“Contém cenas agressivas”, alerta a abertura do vídeo que mostra um trem passando por sobre o corpo estendido de um homem. Era a tarde do dia 28 de julho de 2015. Não se trata de um acidente, porém. Trata-se de um procedimento autorizado expressamente pelo Centro de Controle Operacional da concessionária de trens urbanos do Rio de Janeiro, a SuperVia.
A empresa alegou que mandou passar o trem por sobre o corpo do homem, que fora atropelado minutos antes por outra composição, porque “a paralisação da linha causaria ranstornos para toda a movimentação do horário”. E porque calculara que a passagem do trem não vilipendiaria o corpo. Adílio, que era Cabral e dos Santos, tinha 33 anos, estava desempregado, vendia balas como camelô e há seis meses morava na favela da Serrinha, desde que saiu da cadeia após cumprir pena de três meses por furto de celular. Fora atropelado após pular o muro da estação Madureira.
Em matéria no jornal Zero Hora, de 9 de agosto, a jornalista Letícia Duarte ouve advogado, filósofos, psicanalista, médico e engenheiro, e avalia o quanto o caso “revela sobre a moralidade de nossa sociedade”. Reproduz enquete do jornal O Dia, na qual 60% de 14.942 participantes teriam concordado com a medida tomada pela concessionária, pois a interrupção “atrapalharia a circulação”.
O engenheiro ouvido, mestre em transporte, entende que o “crime maior é o poder público não prestar um atendimento rápido e expor o cadáver horas a fio”. Para a filósofa Cinara Nahra, “quando deixamos de respeitar nossos mortos é porque há muito já não respeitamos nossos vivos”.
O também filósofo Marco Casanova pergunta: “Se tivesse acontecido com a Angélica ou com o Luciano, alguém teria permitido passar por cima?”.
Diversas instituições se manifestaram condenando a atitude da SuperVia, entre elas a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), para quem o caso foi um ato
de barbárie. O antropólogo Roberto da Matta declarou que quer se mudar para outro planeta.
A partir do início do século 20, e até ser desprezada pela opção rodoviarista dos anos 1960, a rede de trens cumpriu o papel de principal estruturadora do desenvolvimento urbano do Rio de Janeiro.
Com 200 quilômetros de percurso, alcança territórios onde moram 8,2 milhões de pessoas.
Nos anos 1970, início da decadência, a relação entre o número de viagens- passageiro-dia e a população metropolitana era de 21%. Em 1997, a relação caiu para 2%, quando houve a privatização da operação para a SuperVia. Depois de quase 20 anos, a proporção está em 5% (viagem-passageiro-dia / população metropolitana). Algo superior a 500 mil viagens diárias.
É muito pouco para o universo alcançável. É pouco, também, em investimentos realizados. A previsão em 11 anos é de R$ 3 bilhões. (Compare-se com o prolongamento do metrô, para ligar Ipanema à
Barra da Tijuca, cujo investimento, em quatro anos, é de R$ 8,5 bilhões.)
As linhas chegam às áreas mais distantes e mais pobres da cidade metropolitana do Rio de Janeiro, especialmente à Baixada Fluminense. Pela baixa qualidade do serviço e pela falta de confiança no
sistema, os moradores são levados a optar pelo modo rodoviário. Concorrem, assim, para que o Rio de Janeiro seja a cidade do país onde a maior percentagem de pessoas leve mais de duas horas para chegar ao trabalho e outras tantas para dele voltar para casa.
O atropelado tem o nome do Descobridor, é de todos os Santos e morre com a idade de Cristo. É uma síntese brasileira.
Ciência Hoje 329, Set 2015