É uma questão em aberto o cálculo de quanto do desemprego, da recessão e da falência dos serviços públicos é devido ao fosso moral no qual submergiram políticos grandes e mega empresários. Deixemos os estudiosos calcularem; não é para vís mortais.
Porém, por suas consequências sociais e econômicas, convém agregar àquele rol a dimensão espacial-urbanística, onde é possível destacar dois tempos: o ciclo do projeto moderno e o ciclo (que seria) do projeto contemporâneo.
No primeiro, o Brasil alinhou-se a paradigmas modernistas desde meados do século XX, e foi bem sucedido. Passou de rural a urbano, construiu valioso patrimônio de cidades, ampliou as fronteiras internas, expandiu e diversificou a produção; superou a ditadura e promoveu a democracia. Não foi pouco. Em contraponto, restou grande passivo sócio-ambiental: quadro sanitário urbano desastroso, mobilidade crítica, violência crescente. Com acertos e erros, esse Brasil foi projetado em intensos debates que polarizaram gerações. Mas o ciclo está superado, sua potência se esgotou.
No segundo ciclo, o atual, o Brasil está em descompasso com o século XXI, ignorando que o urbano é seu mais importante desafio estratégico. O país desconhece que a sociedade urbana tornou-se mais complexa; que a qualificação das cidades reduz desigualdades sociais; que a educação, a saúde e a inovação são urbanas e demandam bom ambiente. Que a boa mobilidade, a universalização dos serviços públicos e o controle territorial pelo estado (ao invés de pela bandidagem) são essenciais para o bem-estar social e para a economia; para que as micro, pequenas e médias escalas econômicas possam criar um sistema produtivo virtuoso – não aquele ancorado apenas nos grandes negócios, nos campões dos empréstimos subsidiados.
Por que o país não debateu esse ciclo do projeto contemporâneo, se o bom senso e a razão o sugerem? Por que não projetou a entrada da cidade brasileira no século XXI, tarefa da política?
Uma parte da resposta pode estar contida na questão que começa este artigo. Depoimentos da Odebrechet desvendaram: o planejamento do território e das cidades não cabe no esquema empresarial-governamental-congressual montado há alguns lustros, nas três instâncias de poder. Não convinha debater, pensar, planejar. Cidade e Política nasceram juntas e potencializam-se mutuamente. Porém, ao Estado patrimonialista não convém a Política. Convém o negócio, nas Medidas Provisórias, nas leis, na escrivaninha da autoridade a traçar linha de metrô.
Entre as evidências está a sucessão de MPs que permitem licitar obra pública sem projeto, logo, promovendo os sobrepreços, os aditivos e a baixa qualidade, e mesmo assim, contrariando a razão, viram lei. A jornalista Miriam Leitão, em depoimento à CBN, afirmou que, quando cobria o ministério da Fazenda não compreendia, ainda que experiente, como MPs eram editadas desprezando tanto o bom senso. Também as entidades nacionais da arquitetura e da engenharia não compreendiam, e se manifestavam contra a enxurrada de MPs que degradavam a ideia de planejamento, inclusive tornando irrelevante o Ministério das Cidades.
(Em entrevista a Jorge Bastos Moreno, o senador protestou: “Não tem sentido alguém pensar que se vende emenda por R$ 150 mil. Com R$ 150 mil não se vende nem na feira do Paraguai.” Ficou a dúvida: emenda se vende? por quanto?)
Sim, o caminho do desenvolvimento está obstruído e cumpre revogar tal entulho legislativo também por necessidade ética e moral.
A decadência econômica, a violência urbana e a crise político-administrativa do Rio de Janeiro (e do Brasil) são faces visíveis do não reconhecimento das exigências da cidade contemporânea. A sua superação não se fará por mágica, mas por um largo processo de debate em busca de consensos possíveis – que se alcançam com o pensar em perspectiva, isto é, com o projeto e a política.
O Globo, 22/4/2017