O Globo nov 16
Depois de uma letargia talvez secular em relação ao tema, os presidentes dos três poderes da República se encontram para debater a segurança pública. Ante número de assassinatos maior no Brasil do que na Síria flagelada pela guerra, segundo o Globo, a reunião acende uma luz ao fim do túnel. (Verdade que o assunto foi antes iluminado pela ONU, chamando a atenção do mundo.)
Anunciou-se um trabalho de articulação entre os governos federal, estaduais e municipais quanto à inteligência e troca de informações. Há muito a fazer na gestão e em inovações tecnológicas. Espera-se que também alcance o combate ao tráfico de armas, ao jogo e às organizações paramilitares. Enfim, a reunião sinaliza uma promissora atitude.
A questão da segurança é emergencial mas não se equacionará no curto prazo, é claro, como demonstrado em tantos programas realizados, tantos estudos importantes conhecidos.
A vitoriosa experiência das UPPs evidenciou que o dominío territorial pela bandidagem armada é a base do crime na cidade. E que não basta a ação policial. Assim, na reunião de cúpula dos três poderes, em que estiveram também presentes o ministro da Justiça, o da Defesa e os comandantes militares, faltou o ministro das Cidades.
O Estado brasileiro historicamente ignora grandes partes das cidades, compostas pelos bairros populares, muitos de classe média, localizados em geral, mas não só, no que hoje chamam por periferias.
Aí, onde se conjugam energias vigorosas em busca da inserção na sociedade, os governos não estão ou estão precariamente. Nesses lugares, sejam loteamentos, favelas ou bairros consolidados, que constituem a grande experiência social de milhões de cidadãos, os serviços públicos, inerentes ao estado, são escassos ou inexistentes, tais como o controle urbanístico e edilício, que, junto com o de segurança, garantem o usufruto do espaço da cidade – onde se tece a rede social e política da cidadania.
Nosso país tem 85% de seus 200 milhões de habitantes morando em cidades. Talvez a maior parte na irregularidade urbanística, edilícia ou fundiária. É preciso rever os estatutos que idealizam o inacessível, justificando a inaceitável abstenção do governo; rever leis federais para permitir adequar a legislação local de ordenação do solo e de controle urbanístico, reconhecendo a diversidade urbana; que dê às prefeituras e aos estados condições de exercício e lhes cobre responsabilidades. Também a legislação fundiária precisa ser revista absolutamente, para que atenda à realidade para a qual as leis (e os cartórios) voltam as costas. É com a lei que o estado domina o território.
Nesta geração, até o final dos anos 2030, mais meio Brasil será construído em nossas cidades. Nunca antes na história do país se fez tanto como se fará em tão pouco tempo: quarenta milhões de novas moradias, mais de metade do que temos hoje. Onde serão construídos? Continuaremos expandindo a anomia?
O domínio territorial de toda a cidade pelo estado democrático é a questão-chave.
É esse o caminho para aflorar a gigantesca energia social hoje abafada pela violência e pelo desprezo institucional. É, por certo, a maior PPP, parceria público-privado, que o Estado poderia contratar: dando condições para a prosperidade das famílias, para as pessoas que estudam à noite, que procuram um trabalho extra, que empreendem um pequeno negócio. O Estado entra com o que lhe cabe e as pessoas oferecem sua potencialidade para o bem estar geral. Por certo, o isolamento no individualismo, ou na grei, deixaria de ser opção para milhões de brasileiros. Quem sabe a política poderia retomar seu alto prestígio?
Foi uma reunião de cúpula. Saudê-mo-la! (Ops!) E que haja outras, em que o espaço da cidade esteja na pauta.