O GLOBO 17 – jun 2017
Todo o poder emana do povo. “Que o exerce por meio de representantes eleitos”, diz a Constituição.
Não há dúvida sobre a crise de representação política que assola boa parte das democracias, a ilustrar-se pela norte-americana e seu presidente. Os erros de avaliação do primeiro-ministro inglês, que convocou o plebiscito e resultou no Brexit, que não queria, e, agora, de sua sucessora, que antecipou eleições para se fortalecer e saiu tosqueada, são evidências da falta de sintonia entre representantes e representados.
A França exemplifica tal quadro com a eleição de jovem político que se opôs aos partidos que se alternavam no poder desde 1958. Optando pela interlocução com a sociedade civil, dela emergiram candidatos ao Congresso sem rótulos ideológicos, sem exercício anterior de mandatos, metade mulheres. Segundo o jornal Le Monde, o partido há pouco criado pelo novo presidente tem chances em 91% dos distritos eleitorais.
A experiência política da França há de valer para evitar, ou reduzir, frustrações futuras.
No nosso caso, o divórcio entre a fonte do poder, o povo, e a sua representação, os políticos, se evidencia na percepção de que a representação se assume como o próprio poder.
Em recente e brilhante artigo, “Volver”, publicado no Estadão, o sociólogo Luiz Werneck Vianna lembra que as forças políticas que se uniram no combate à ditadura, a partir dos anos 1970, privilegiaram os vínculos com a sociedade para “estabelecer os nexos da democracia política com a questão social”. Contudo, segundo ele, quando partes importantes daquelas forças políticas passaram a exercer o poder, optaram pelo Estado, ao invés da sociedade civil, como fator ativador das mudanças sociais.
Entre o que ficou pelo caminho, podemos incluir as associações fundadas em torno de temas urbanos. Elas envolveram a classe média, moradores de favelas e de loteamentos populares, e foram importantes na construção de um pensamento democrático, que afinal compôs a nova Constituição. Quando, depois, o “orçamento participativo” se apresentou em alternativa, a participação social se esvaiu à medida que as verbas debatidas tendiam à irrelevância. O parceiro já era o Estado.
O divórcio entre origem do poder e a sua representação é confirmado no desprezo para com o espaço do povo. As questões sociais traduzidas na vida urbana se tornam invisíveis ao olhar vendado dos agentes políticos. Assim, o governo federal posterga deste ano para 2019 (!) a 6ª Conferência Nacional das Cidades. Definida em lei como “instrumento de garantia da gestão democrática da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano”, sinaliza-se que não existe PNDU ou que sua gestão dispensa a sociedade. Sempre retrocesso. Que metade do Brasil urbano não tenha esgoto adequado, que a mobilidade seja uma tragédia para milhões, que a moradia continue sem política, que áreas crescentes das cidades fiquem sob domínio da bandidagem, que a violência exploda, nada disso entra na pauta política. É um outro planeta.
Nesse sentido, a crise brasileira seria subproduto do divórcio fonte-representação. Desconectados da origem do poder, e do lugar do poder, os “representantes eleitos” mesclam-se ao Estado, e o fazem todo poderoso. Dele se apropriam, mas dele ficam dependentes. É uma construção abrangente e ambígua, pois até instituições que se reconhecem como sociedade civil decorrem do Estado, sustentadas por impostos, sejam de trabalhadores ou patrões, como a CUT ou a Fiesp.
Ampliar a presença da sociedade civil nas decisões do país parece ser o caminho que as democracias francesa (Em Marcha!) e espanhola (Podemos!) estão a sugerir. Contudo, sabemos, elas não o fazem à margem da política, mas com ela.
É bom voltar à origem. Afinal, em tempos de carne fraca, convém lembrar que é o olho do dono que engorda o boi.