O Globo 25 fev 17
Este é o primeiro carnaval pós-centenário do primeiro disco de samba, “Pelo Telefone”, composição de Donga. Cultura originária das áreas pobres, de maioria negra, em geral localizada nas favelas e bairros populares da Zona Norte, o samba percorreu um caminho acidentado nesses cem anos, sobretudo nas primeiras décadas. Samba, carnaval carioca e favela são filhos da mesma família.
A meio desse caminho, o preconceito de parte da elite brasileira ainda se expressava com ênfase. Em 1967, reclamava em editorial o jornal O Estado de São Paulo, segundo lembra Elio Gaspari, em seu magistral livro “A Ditadura Envergonhada”: Aquilo que se devia à espontaneidade do sentimento popular desapareceu para em seu lugar surgir essa coisa que se chama “escolas de samba”, onde o mais sofisticado mau gosto se alia ao marginalismo de uma população que não soubemos até agora integrar no organismo nacional.
Tal avaliação foi feita justamente na década gloriosa que produziu a “Aquarela Brasileira”, de Silas de Oliveira, para o Império Serrano, e os carnavais do Salgueiro de Arlindo Rodrigues e Fernando Pamplona, escola campeã do Quarto Centenário. Não obstante o preconceito, o samba passou de excluído a rei e sua corte se exibe a cada ano nas escolas de samba.
(O que diria o editorialista se visse como sua paulicéia de hoje abraça o ‘sofisticado mau gosto’ e importa os expoentes daquele ‘marginalismo’ para ilustrar seus carnavais?)
A rejeição não distinguia lados do espectro político. Zuenir Ventura, mestre que sabe tudo dos anos sessenta, em recente crônica, nos fala que “durante a ditadura militar, uma esquerda mal humorada implicava com o carnaval, chamando-o de fuga, evasão, descarrego. Em uma palavra, alienação”. O carnaval de rua reinventou-se com a Banda de Ipanema, de 1965, e tomou conta do Brasil.
Nessa mesma década gloriosa para o samba e para as escolas, a favela, seu lugar simbólico, foi objeto da mais efetiva política de rejeição. A remoção compulsória tomou impulso e dezenas de milhares de famílias foram obrigadas a se mudar para conjuntos residenciais remotos, prioridade habitacional dos governos Carlos Lacerda e Negrão de Lima.
Cumprida, em parte, a tarefa de expulsar a favela da Zona Sul, os governos seguintes abstiveram-se do tema. Favelas, bairros populares e mesmo os conjuntos que construiram ficaram ao abandono. Criaram-se as condições para o paulatino domínio desses territórios por traficantes e milicianos cada vez mais fortemente armados, submetendo as suas populações e controlando atividades econômicas crescentes.
É verdade que as favelas de hoje são menos precárias do que eram em meados do século passado. As casas são melhores. Mas o que é para ser público avançou aos solavancos. A urbanização dos assentamentos populares, que tomou ritmo nos anos 1990, decaiu. Bairros populares da Zona Norte, antes razoavelmente infraestruturados, perderam vitalidade. As redes de infraestrutura e de transporte deterioraram-se e cresceram as dificuldades oriundas da violência urbana.
Nesses cem anos, enquanto o samba, as escolas de samba e o carnaval alcançaram enorme potência cultural e econômica, seus lugares originais não foram igualmente reconhecidos. O caminho para as favelas e bairros populares parece ainda ser longo e acidentado. Contudo, garantir o controle territorial deles por parte da Constituição e do Estado não é mais opcional nem pode esperar décadas – é dos mais importantes e urgentes problemas a enfrentar pelo país.
Se persiste em setores a ideia que se trata de áreas ocupadas por uma população que ‘não se soube incorporar ao organismo nacional’, estão equivocados. Não avaliam que ela seja parte majoritária da Nação.
O samba deu muitas voltas, evolui a cada carnaval. Já o seu lugar original, e simbólico, precisa adentrar plenamente a avenida libertadora da Constituição. Toda uma energia criativa, política e econômica, potencializará o desenvolvimento nacional.