O GLOBO 21 abr 18
No Vale do Rio Cabeça, que desce das Paineiras rumo à planície onde se instalava o Engenho d’El Rey, hoje bairro do Jardim Botânico, ainda podem ser observados caminhos pavimentados em pé-de-moleque, pisos de antigas casas e pontes de pedra, remanescentes de fazendas coloniais. O vale foi reflorestado em 1862. Na sede do engenho foi erguida em 1603 uma capelinha ainda existente dedicada a Nossa Senhora da Cabeça. É o que nos diz o diplomata-ambientalista Pedro da Cunha e Menezes, um dos autores do encantador guia “Rio Secreto”, publicado pela Editora Jonglez.
O título do livro é sugestivo, nos informa sobre temas pouco conhecidos, embora importantes para a cidade. De fato, uma cidade é soma de esforços, mesmo os aparentemente menores, da superposição de obras, de vidas, de ideias que transformam o presente e fazem o substrato de nosso futuro.
Vizinho do rio Cabeça, o magnífico Jardim Botânico, o Jardim da Aclimação, de D. João VI, tinha em seu limite leste um muro em concreto que impedia a vista do parque de quem passava pela rua Pacheco Leão. Foi uma decisão arquitetônica simples, tomada nos anos 1990, que substituiu o muro por um leve gradil que incorporou à cidade, à escala humana, uma paisagem deslumbrante, antes quase secreta.
Quem lembra dos abrigos para parada de ônibus em alvenaria? Parecem remotos, hoje que convivemos com outros, elegantes, cuja adoção se deu nesse mesmo período.
Na Praça XV, no Centro, a derrubada da Perimetral destacou o belíssimo mosaico de granito que pavimenta o percurso do Paço às barcas. Sempre esteve ali? Não, foi feito ao se construir o mergulhão que retirou os ônibus dessa histórica praça. Logo, são três superposições de decisões que farão a memória das futuras gerações.
Ali pertinho, na mesma década, iniciou-se o projeto de reurbanização do Morro da Conceição. Entre outras vitórias, recuperou o jardim suspenso do Valongo, do início do século XX, e deu novo protagonismo à Pedra do Sal, mais antiga.
Desculpe, amigo, se faço estas considerações meio que desconcertadas. Estas notas têm um tom talvez muito pessoal, neste espaço que precisa ser para o debate da cidade. Mas se a cidade é feita de sucessivas e superpostas ações, providências, construções e desconstruções, ela, de certo modo, imita a vida. O grande historiador italiano Aldo Rossi avaliava que uma cidade é outra em duas gerações – mesmo que sua transformação seja imperceptível no dia a dia.
Cada um de nós, um pouquinho, coloca o seu tijolo para a construção de cidade mais solidária, melhor, mais bonita. Cada um recebe um pouco do barro, e lhe dá a forma que suas convicções e possibilidades oferecem.
Celebro, assim, com sua licença, os cinquenta anos, 1968-2018, completados há poucos dias, que Andy, minha mulher, e eu pudemos desfrutar, juntos, desta maravilhosa cidade. Cidade que, recém formados em arquitetura, escolhemos para viver, constituir família, trabalhar e fazer amigos. Como foi mágico desembarcar de um Electra da Varig em tarde ensolarada de um domingo ameno sob a maresia do Santos Dumont e as bênçãos do Redentor no Corcovado! Celebro, com estas notas elencadas, uma parte dos tijolinhos que ela agregou ao Rio como arquiteta.
Tal como aquelas trilhas, tomadas pela floresta, hoje subsistem, e continuam a encantar, sua contribuição, ainda que sem ela, que partiu, há de continuar se somando à de todos que fazem do Rio a nossa escolha e uma cidade melhor.