Não bastasse o vexame que passou ao ser apresentado como um mínimo pibinho, nosso pibinho 2019 ainda perdeu importância com o protagonismo midiático do covid-19. Que, no entanto, irá certamente coroar é o seu sucessor, o já esperado pibinho de 2020.
Mas, não sejamos exigentes. Nem um nem outro são exceções. Ao contrário, são a regra há quarenta anos. Senão, vejamos.
Nas seis décadas centrais do século 20, o índice de crescimento da população brasileira foi o maior do mundo. Um fenômeno. O Brasil, que era agrário, ficou urbano e se industrializou. Ao final desse período explosivo, de 1960 a 1980, o PIB brasileiro per capita cresceu a taxas médias de 4,5% ao ano. Outro fenômeno.
Nas quatro décadas seguintes, isto é, entre 1981 e 2018, o PIB per capita cresceu à média anual de 0,45%. Uma tristeza. As políticas econômicas foram ortodoxas, heterodoxas, desenvolvimentistas e liberais.
Naquela explosão de meados do século, o país aproveitou as cidades consolidadas historicamente e elas responderam razoavelmente.
Mas nas décadas posteriores, ao invés de recuperá-las, o Brasil lhes deu as costas. O sistema federal de planejamento urbano foi extinto pouco antes do sistema de financiamento urbano e habitacional. No Rio, desfez-se a instituição de planejamento metropolitano. As prefeituras apequenaram seus órgãos de planejamento. Criou-se um ministério que se foi sem ter vindo. As metrópoles brasileiras, que abrigam metade da população, continuam sem coordenação.
É constrangedor constatar a brutal perda de energia de grande parte da população em decorrência da disfuncionalidade da cidade. Ela tem ônus excessivos para a mera sobrevivência urbana, com falta de água e de esgoto, ausência de serviços públicos e condições desumanas no transporte e na habitação.
A mobilidade social que animou por algum tempo a sociedade brasileira está subjugada pela cidade da anomia, lugar onde o Estado não chega ou não se impõe.
É onde vive talvez metade dos brasileiros – a quem acenam com um messias, o Pibão.
Mas, como os serviços, o conhecimento e a inovação são urbanos e as cidades claudicaram, o crescimento econômico freou. Quem acelerou foi a desigualdade.
Há poucos dias o economista André Lara Rezende considerou que o retorno do investimento público é decisivo para a retomada econômica. Há de ser. Mas
que o investimento seja fruto de planejamento como política de Estado, que não se terceirize nem autocratize a decisão. Invista-se – dinheiro público ou privado – em saneamento, em mobilidade e em política de habitação competente, garanta-se o domínio do Estado no território, e teremos retomada econômica.
Convém lembrar: cada cidade tem o seu capital espacial, que é o valor de seus bens e serviços. Nas primeiras décadas da industrialização, nós gastamos o capital espacial de nossas cidades para acolher a explosão demográfica e as novas economias. E não repusemos o capital que gastamos. Nossas cidades ficaram em débito, muitas estão à falência. É uma aposta temerária achar que o Pibão voltará sem que a sua base territorial seja recuperada.
Quatro décadas são duas gerações. Quatro décadas estagnadas é desumano.
Nesta coluna e entre colegas que aqui escrevem, como Luiz Fernando Janot, Washington Fajardo e Claudio Frischtak, buscamos ser propositivos para o futuro de nossas cidades. Temos razão para isso, pois acreditamos na energia vital do brasileiro. É uma razão que envolve o amor pelo Rio e pela vida urbana, o lugar da interação social, do convívio, da troca de experiências, da tolerância.
O corona e o pibinho coronado passam, a cidade fica. Ela só pede a nossa atenção.
o GLOBO 14 mar 20