Em 1838, Barcelona era a cidade da Espanha de maior vitalidade econômica. Por imposição do governo central, não se podia construir além das muralhas, o que levou a uma crise de moradia, com os piores índices de insalubridade. A péssima qualidade de vida uniu a todos em uma revolução vitoriosa que derrubou as muralhas e a lei – e é um dos genes do movimento independentista.
Quase dois séculos depois, o governo chinês avalia que a crise política que abala Hong Kong “tem raiz na crise de moradia”. Segundo a jornalista Luiza Duarte, correspondente da Folha, grande parte da população vive em apartamentos pequenos e caros, insalubres, subdivididos para dezenas de pessoas.
Nos dois casos, as regras são estritas e o controle é firme; no Brasil, deu-se diferente. No papel, as leis são exigentes; mas, como o país não ofereceu ao povo as condições para uma habitação legal e saudável, são inaplicáveis.
Ante a incapacidade de agir como reguladora da ocupação urbana, as municipalidades se omitem, desta que é a sua função original. O resultado é assemelhado: a crise da habitação se espraia. Favelas e loteamentos irregulares e clandestinos foram a alternativa para mais de metade da população. Expandiu-se a cidade irregular.
As prefeituras foram pouco a pouco restringindo sua atuação a alguns bairros, onde a propriedade perderia valor em caso da irregularidade prevalecer. A cidade legal diminui.
Sem governo, o espaço popular foi ocupado. Primeiro por valentões, depois por traficantes, por último por milícias. E, à medida que crescem as áreas dominadas e os dinheiros envolvidos, os novos donos da cidade armam-se como exércitos, garantindo os seus territórios como os nossos exércitos não o fizeram. A crise da habitação ampliou-se, tornou-se crise política, econômica e social.
Ante tragédias recorrentes, a morte de inocentes, como Ágatha, e também a morte de policiais, às centenas, o vice-presidente da República avalia que estamos em uma guerra de guerrilhas. Há de ter razão, pois enumerou diversas características desse fenômeno que sua formação militar lhe permite ajuizar.
Então, a pergunta se impõe: que política de segurança pode superar esse desafio?
Nenhuma política setorial, per si, dará conta, é o que mostra Barcelona, Hong Kong e a nossa própria experiência. Ao voltarmos as costas para a questão urbana, que se caracteriza por ser abrangente, insistimos em políticas segmentadas, em ações de segurança como se elas fossem suficientes. Sozinhas, não bastam – ampliam o problema.
É indispensável trazer à regularidade os territórios populares, garantir-lhes a cidadania. Mas as prefeituras não conseguirão cumprir seu papel central sem um novo acordo federativo. Elas precisarão descarregar-se de tarefas que não lhes sejam básicas para poderem tratar daquilo que lhes compete. Os estados poderão absorver algumas delas. Mas, sem dúvida, ao governo federal incumbe garantir a integridade do território nacional, inclusive nas cidades,
Não simplifiquemos, porém, achando que o controle urbanístico garante a segurança e o desenvolvimento. Tampouco podemos nos iludir: a anomia urbanística é incompatível com o desenvolvimento econômico, político e social – e com a segurança cidadã, um direito constitucional.
Sem uma reversão nesse quadro urbano, carioca e brasileiro, a violência se ampliará enquanto a cidade se esvai. É urgente construir consensos mínimos, ainda a tempo.
Ainda há tempo para esperança? Ou as firulas que constroem impunidades para os poderosos, que dão razão aos corruptos e aos desiludidos, serão as vitoriosas? O escárnio prevalecerá? A decisão a ser anunciada pelo STF sepultará a esperança em um país que possa se reconstruir com ética na política e nas instituições? A decisão estará dando munição àqueles que não acreditam na democracia?
O GLOBO 28 set 19