O GLOBO 16 fev 19
A cada 15 minutos um professor municipal entra em licença por problemas mentais; a cada 20 minutos fecha uma loja; acusados de matar Marielle são ex-PMs; apreendido arsenal com 117 fuzís; calçadas esburacadas; valas negras; enchentes e mais enchentes. De certo modo desconexas, entre essas situações há um denominador comum: elas emergem da questão urbana.
Ainda que tenhamos tido avanços quanto aos direitos sociais, parcelas importantes da população estão privadas de seus direitos de cidadania em seu ambiente urbano, onde, sem Estado, não vige a Constituição. Essa privação, crescendo, derrama-se qual mancha de óleo sobre todo o tecido da cidade. E derruba a qualidade de vida no conjunto.
Contudo, é preciso reconhecer o papel que as cidades desempenham no desenvolvimento. Veja-se que nas últimas sete décadas a população urbana aumentou de 12 milhões para 180 milhões; o número de domicílios passou de 2 milhões para 60 milhões; dobrou a expectativa de vida do brasileiro. Esse resultado maiúsculo é visto displicentemente, sem que a sociedade e o Estado dêm à cidade a atenção necessária. A cidade é um ser vivo, precisa de cuidado.
O abandono da cidade cobra a conta. Professores adoecem também porque as condições ambientais-urbanísticas, onde se inclui a segurança e o convívio social, estão esgarçadas. Lojas fecham porque a economia vai mal e igualmente porque o espaço público está deteriorado. Com o Estado omisso, ou governos coniventes, consolidam-se as bases em que agentes públicos matam arrogantemente e montam ostensivamente arsenais bandidos compatíveis com um estado de guerra. “Em decorrência da natural dominação de territórios”, controlam votos e indicam delegados e comandantes, diz o jornalista Merval Pereira, no Globo.
Nesse contexto perverso, cresce a desigualdade entre áreas intraurbanas. É o caldo de cultura para a permissividade, a ilegalidade e o crime. Que a desigualdade esteja à vista ou distante, tanto faz: a cidade é o cadinho onde se estabelecem as relações de troca mais intensas, no quotidiano do trabalho e das demais interações necessárias à vida contemporânea.
Será ocioso que sejam os governantes inaptos ou muito competentes. Serão triturados pelo rolo compressor das demandas justas e democráticas e não satisfeitas.
A reversão desse quadro tem uma premissa essencial: a ação política da sociedade; e um objetivo civilizatório: o Estado com pleno domínio sobre toda a cidade, a todos garantindo a proteção constitucional. Sim, não é tarefa fácil nem rápida em um país de privilégios.
E nós, acostumados a cobrar dos governos responsabilidades que são nossas, algumas até prosaicas, como a conservação das calçadas (é penoso que edifícios da Avenida Atlântica deixem em ruínas os mosaicos de Burle Marx, uma jóia do mundo!} e o cuidado com o lixo, precisaremos rever procedimentos. Também as empresas têm que justificar seu discurso de menos Estado sendo eficientes e socialmente comprometidas. Como se explica que, privatizadas há vinte anos, as linhas de trem continuem em estado pré-moderno? Como os ônibus, privados, continuam poluidores, barulhentos, inacessíveis? E os fios de eletricidade, emaranhados inacreditáveis, aleijando a arborização pública?
Nestas sete décadas do Brasil urbano a cidade se transformou em outro fenômeno espacial, social, político e econômico. É outro fenômeno muito mais complexo, a ser reinterpretado.
Tal como a inflação foi vencida, com estudo, com proposta, com pulso, com novas instituições e com o desejo da população, também a cidade precisa de um Plano Real. O sistema urbano brasileiro precisa ser reinterpretado como instituição politica, administrativa e como espaço urbanístico. É condição para que possa servir à democracia e ao desenvolvimento neste novo século.
A conta vai para a cidade, e para o país talvez em dobro. É nas cidades que se localiza a dinâmica do mundo contemporâneo.