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Entrevistas

“Cidade não é só rua e edifício, é o que acontece neles”

By 06/01/2015julho 21st, 20214 Comments

por Paula Laureano em Portal PUC-Rio Digital
17-12-2014
 

O arquiteto urbanista Sérgio Magalhães, presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), sustenta a ideia de que a cidade é um ser vivo em constante transformação, e que não se pode ignorar suas interações com quem a habita. Para Magalhães (que foi secretário municipal de Urbanismo entre 1993 e 2000), problemas como a mobilidade urbana não devem ser resolvidos com a construção de mais ruas e viadutos: “A mobilidade, do Rio de Janeiro e das cidades em geral, não pode mais ser baseada hegemonicamente no rodoviarismo”, acredita o especialista. Nesta entrevista ao Portal PUC-Rio Digital, ele defende que o respeito à democracia e ao planeta estão intrinsicamente ligados à arquitetura.

Portal PUC-Rio Digital: O senhor afirma que a cidade é um ser vivo. Em que sentido?
Sérgio Magalhães: A cidade respira. A cidade ama. A cidade acolhe as pessoas. Ela reage aos afetos e às hostilidades. Ela nasce, cresce, e pode morrer. É um ser vivo, sobretudo porque está em permanente transformação. Tal como as pessoas e os animais, a cada dia há outra conformação, outros interesses, as questões mudam. No cotidiano, as pessoas podem não ter essa percepção, porque se vê apenas a materialidade urbana. Mas ela é feita não apenas de matéria, como também da interação entre as pessoas e dos usos dos lugares. É essa relação que gera vida. A cidade não é apenas edifícios e ruas; ela é o que acontece nos edifícios e nas ruas, mais as pessoas, os animais e a memória coletiva.

Portal: O Congresso Mundial da União Internacional de Arquitetos, que se realizará em 2020, é uma espécie de Copa da Arquitetura. Pensando na Copa de Futebol, há alguma experiência em que devemos nos inspirar?
Magalhães: Se a cidade é um ser vivo, ela também é um ser único. Então, cada experiência tem as suas riquezas, os seus problemas e os seus ensinamentos. O que há de novo na doutrina urbanística e arquitetônica é que hoje nós temos o desejo de construir uma cidade melhor a cada dia, todos os dias, reconhecendo os espaços e a cultura existente. Diferente do que faziam os modernistas no século passado, que pretendiam construir uma cidade nova e entendiam que a cidade herdada era ruim e não valia a pena mantê-la.
Entre as memórias dos congressos mundiais, o de Barcelona, em 1996, é muito citado. O que o qualifica como uma experiência importante é que ele não se limitou a produzir um evento num determinado ambiente; a própria cidade entrou em processo de participação com arquitetos do mundo todo. Houve uma interação de tal força que ficou na memória dos que participaram como um evento ímpar. Nós queremos que, da mesma forma, a cidade do Rio de Janeiro também seja não só sede, mas também participante do Congresso de 2020.

Portal: De que modo a arquitetura se relaciona com a democracia? E com as necessidades do planeta?
Magalhães: A democracia tende a produzir questões para a arquitetura, que conduzam a uma melhor resposta para os cidadãos. No caso do tempo de hoje, se busca a equidade – diferente da igualdade, ela reconhece as diferenças e trata de oferecer as condições para que os diferentes tenham igualmente possibilidades de se desenvolver. Então um processo democrático, que construa a equidade, oferece à arquitetura melhores possibilidades para que ela floresça. A arquitetura objetiva a construção do espaço para a felicidade dos homens.
Já as razões do planeta são as mesmas da cidade e da arquitetura – é construir um mundo melhor. Elas nos são apresentadas como algo que precisamos observar para que as nossas gerações atuais consigam levar para as futuras o grau de qualidade que recebemos dos nossos antecessores. E a arquitetura também é isso, é a oportunidade de resolver problemas que permitam uma melhor adequação aos desafios do clima de modo saudável, de modo econômico, de modo pleno, e não utilizando mecanismos que gastem as energias vitais da sociedade e do próprio planeta.

Portal: As favelas já superam 20% do total de moradias no Rio de Janeiro e em São Paulo. Será que um dia poderemos olhar para as favelas realmente como bairros?
Magalhães: Nós temos que olhar as favelas como cidade. Há muitas formas urbanas que constituem bairros, e a favela é uma delas. A favela era vista como algo transitório, provisório, que poderia ser eliminada. Nós achávamos que as favelas eram intocáveis, que não podiam ter uma atuação pública relevante, e que só o saber popular tinha condições de intervir na favela. Com o Programa Favela Bairro (concebido por Magalhães em 1994, na primeira gestão de Cesar Maia), houve uma modificação nesse pensamento. Passou a ser possível levar às favelas os serviços de hoje, como infraestrutura e equipamentos sociais, ao mesmo tempo em que os valores ambientais e culturais estejam preservados. Eu gostaria que hoje as favelas pudessem ter todos os elementos contemporâneos, mas que o termo “favela” se descaracterizasse do modo pejorativo e que pudessem ser vistas da mesma forma que se percebe um prédio, um edifício, um shopping center.

Portal: Quase 30% da população do Rio leva duas horas para ir de casa ao trabalho. Que soluções arquitetônicas poderiam ajudar na mobilidade do Rio de Janeiro?
Magalhães: Do Rio de Janeiro e das cidades em geral, a mobilidade não pode mais ser baseada hegemonicamente no rodoviarismo. Isto é, nos modos de transporte sob pneus, automóveis e ônibus. Uma cidade grande como o Rio de Janeiro precisa dispor de uma rede de transporte de alta capacidade, que transporte um grande número de pessoas, como metrô ou trem urbano, em que esteja preservado o grau de eficiência e confiabilidade em relação ao tempo da viagem, ao conforto e à segurança. Então, imaginar que construindo viadutos, elevados, abrindo ruas nós vamos diminuir os problemas de mobilidade é uma ilusão. Quanto mais pistas de automóveis tivermos, mais difícil se dará o transito. O que nós devemos considerar para a mobilidade contemporânea é que ela não deve excluir nenhum meio de transporte, porque para cada um deles há uma vocação. Nos grandes deslocamentos, geralmente impositivos, casa-trabalho, a cidade grande oferece melhor serviço se utilizar o metrô ou o trem. Em rede, não em linha, onde haja conexões. Nos demais deslocamentos, a população pode caminhar. Nesse caso, há uma demanda de espaço público seguro e confortável, com calçadas boas, como elemento complementar. Não vamos nos iludir. Não tem futuro o modelo que adotamos durante 50 anos, de construir estradas e ruas, e que descaracterizou a maior parte das nossas cidades. Não tem futuro, e as grandes cidades do mundo já demonstraram isso.

Portal: Qual a sua opinião sobre o Arco Metropolitano e o Porto Maravilha, duas grandes obras em andamento no Rio de Janeiro?
Magalhães: O Arco Metropolitano é um equipamento importante para a logística, para o transporte e a distribuição das mercadorias. Mas, se for aproveitado como indutor de ocupação urbana, ele fará um péssimo serviço para a cidade. Ele diminuirá a densidade populacional, portanto tornará os serviços públicos mais caros e, certamente, desqualificará a cidade. Eu defendo que o Arco Metropolitano tenha o desenho urbanístico da Linha Vermelha, que dê acesso apenas em alguns pontos. Ele não pode ser igual à Avenida Brasil ou a Via Dutra, em que se constrói nas suas margens como se fosse um trecho urbano.
Agora, o desenvolvimento da área portuária é muito importante para fortalecer a centralidade do Centro Histórico em relação a toda a Região Metropolitana. O Porto Maravilha precisa ter um desempenho que dê perspectiva aos que vão investir e morar lá. O problema é que ele está sendo desenvolvido em um ritmo lento, e eu temo que ele perca o timing das Olimpíadas e não possa demonstrar toda a vitalidade possível. Eu desejo que a área portuária seja um grande sucesso, que tenha muita gente, muitos negócios, muito trabalho e habitação. Mas ainda é uma incógnita.

Portal: O senhor já afirmou que “um Brasil Urbano se somará ao Brasil Urbano de hoje”. Como visualiza esse Brasil do futuro?
Magalhães: Independentemente do crescimento, nós vamos construir mais uma cidade na já existente. O tamanho médio das famílias vai diminuir, e novas moradias que vão ser necessárias. Como a cidade não crescerá em população, se ela crescer em área não ocupada vai ter menos gente morando por quilômetro quadrado. Ao perder densidade, vai tornar mais caros os serviços públicos e a infraestrutura, e vai dar menos vitalidade aos espaços públicos. Logo, eu desejo que essa nova cidade que se somará à cidade existente seja construída em áreas já ocupadas. Se observar bem, você encontra muitos espaços disponíveis, com facilidade. Aqui mesmo ao lado (a entrevista foi concedida na sede do IAB, no Flamengo), há dois quarteirões vazios desde que os bondes deixaram de existir. A Zona Norte tem uma enorme quantidade de terrenos ociosos, de galpões abandonados. Lugares onde se podem construir moradias, comércio. Imagina esses ambientes deixando de ser ociosos, começando a ter vida; todo o entorno melhoraria.

Isso não significa construir edifícios altos: eles não necessariamente aumentam a densidade urbana, ao contrário, podem diminuir. Eu e os meus alunos da UFRJ fizemos um estudo sobre isso. Existe um trecho em Ipanema entre a Rua Visconde de Pirajá e a Lagoa, onde só se encontram edifícios de cinco andares. Esse trecho chega ser 10 vezes mais denso do que os bairros das torres da Barra da Tijuca, por exemplo, porque entre um edifício e outro há grandes espaços, os edifícios são altos, têm menos aproveitamento, e as ruas não têm vitalidade também. A densidade ali também é mais alta do que o condomínio de edifícios conhecido como Selva de Pedra, onde moram pessoas de classe média-alta, no Leblon (o condomínio reúne 2.251 apartamentos em 40 edifícios). Paris tem gabarito de seis andares, e é considerada riquíssima sob o ponto de vista de vitalidade urbana. Já Nova York, conhecida por seus arranha-céus, consegue equilibrar a densidade populacional com espaços de convivência no meio de seus altos edifícios. A praça do Rockfeller Center (72 andares), famosa especialmente no inverno, é um bom exemplo.  

Portal: Em meados do século XX, o Brasil deixou de ser predominantemente rural para se tornar predominantemente urbano. Quais os pontos positivos e negativos dessa nova etapa?
Magalhães: Todos os pontos são positivos. A tendência é a vida urbana, é um desejo majoritário, porque é por ela que as pessoas conseguem uma saúde melhor, um emprego, educação. As condições sociais melhoram. A vida urbana proporciona interação, e o que faz a cidade existir é o desejo das pessoas interagirem umas com as outras, com pessoas diferentes, não iguais. O que dá riqueza na cidade é a possibilidade de circular e encontrar pessoas que se mostrem enriquecedoras mutuamente. É claro que o rural tem valor também, mas a ideia de que a vida no campo é de virtude e de que a vida na cidade é de pecado já é uma ideia antiga, que já está superada.

Portal: Arquitetura e urbanismo são indissociáveis?
Magalhães: Sim. Eu chamo tudo de arquitetura. Faz-se essa separação devido às atribuições profissionais reguladas por lei. Mas a rigor é tudo arquitetura. Ela trabalha com todas essas escalas de ocupação e de desenvolvimento do território. Eu sou arquiteto urbanista. 

Portal: Ser arquiteto é como brincar de ser Deus?
Magalhães: Não, eu acho que não é brincar; é propriamente ser Deus (risos). Já houve um tempo em que os arquitetos, ao projetar determinado ambiente, pensavam em transformar a vida das pessoas, em direcioná-las por um determinado caminho, em determinar o modo como elas viveriam naquele ambiente. Então, nesse aspecto ele seria Deus. Isto foi a concepção modernista de arquitetura. Ela desconsiderava a cidade existente, porque o que ela herdou já estava construindo aquele homem cheio de problemas, de desigualdades, da pobreza e da intolerância. Então o arquiteto modernista construiria uma cidade de homens felizes. Se você comparar uma cidade grande de hoje com as cidades modernistas, tipo as superquadras de Brasília, verá uma grande diferença. Os condomínios fechados, shopping centers, os subúrbios norte americanos em que moram ali pessoas com um determinado padrão de vida, com dificuldade às vezes até forte de interação com o outro. A crença era que o ambiente produziria felicidade, conduziria a relações sociais harmônicas. Hoje, nós estamos convictos de que o futuro é a soma dos presentes. Não cabe mais a pretensão de que o que você conceber arquitetonicamente determinará o comportamento humano. O que cabe, sim – e isso é que dá ao arquiteto maior prazer –, é produzir espaços de qualidade e que ajudem as pessoas a serem felizes.