Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 11/10/2014
As últimas semanas foram ricas em cenas inesquecíveis na propaganda de TV. Destaco o ‘comercial’ do político de ficha controversa que se auto-proclama um lutador pela ética; ou a autoridade que recomenda o voto em candidato cheio de ruindade e o apresenta como ‘o melhor do país’.
Lembro ainda o protagonizado por atriz de grande credibilidade que exalta a vida em um condomínio fechado denominado “Ilha” – que não é cercada por água, mas ‘isolada’ da cidade.
São cenas em que a ficção assume-se como realidade e embaralha nosso acervo de valores.
Nas mesmas semanas, as eleições se desenrolaram passando ao largo da questão urbana. Em um país onde quase toda a população mora em cidades, é a realidade parecendo ficção.
Onde ficaram as dificuldades de mobilidade? A precariedade de moradia e de saneamento? A degradação dos espaços urbanos? A escassez dos serviços públicos? A insustentabilidade do modelo de expansão das cidades?
Quando algum desses temas é citado na propaganda política, fala-se em recursos financeiros ou em quantitativos; nada se diz sobre conceitos e qualidade dos investimentos.
O caso da mobilidade é exemplar: no Brasil urbano, embora o transporte coletivo seja o mais demandado pela população, os governos gastam 14 vezes mais em despesas relacionadas ao transporte individual do que ao transporte coletivo.
Também na habitação, seja com o Minha Casa Minha Vida ou com os condomínios tipo ‘ilhas’. A jornalista norte-americana Jane Jacobs reconhecia que apenas recursos não são suficientes. “Veja o que construímos com bilhões: conjuntos habitacionais de baixa renda que se tornaram núcleos de delinquência, piores que os cortiços que pretendiam substituir; conjuntos habitacionais de renda média que são monumentos à monotonia; conjuntos habitacionais de luxo que atenuam sua vacuidade; vias expressas que evisceram as grandes cidades. Isto não é reurbanizar as cidades, é saqueá-las.”
Esse desabafo de Jacobs é de 1961, em livro sobre a experiência norte-americana. Alguma semelhança com os modelos do finado BNH, que retornam fora de hora neste Brasil do século XXI?
O BNH (1964-86) financiou 4,4 milhões de domicílios e o MCMV (2009-14) financiou 1,5 milhão. Os números impressionam. Mas representam apenas 30% e 20%, respectivamente, das moradias construídas em cada período. Somando BNH, MCMV, CEF e todo o mercado imobiliário, financiou-se menos de ¼ dos 50 milhões de novos domicilios urbanos desde 1964. Contextualizados, o brilho diminui e não explicam a adoção de modelos falidos que criam guetos e induzem à expansão insustentável das cidades.
Contemporâneo de Jacobs, o historiador italiano Leonardo Benévolo também avaliava não haver determinismo entre crescimento econômico e melhora da cidade – mas interdependência. Para ele, a melhora urbana é um dos modos para se alcançar o equilíbrio geral.
Tais conceitos explicitados na segunda metade do século passado não cairam no vazio. A experiência recente dos países mais desenvolvidos demonstra que a qualificação dos seus sistemas urbanos foi um dos esteios da melhora geral que experimentaram nas últimas décadas.
As boas cidades são os verdadeiros motores deste novo século.
Esperemos que nestes segundos turnos das eleições elas venham para o palco dos debates. Talvez a realidade não reluza tanto quanto a ficção sugere. Mas reconhecer os problemas é caminho para o seu enfrentamento.