Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 16/08/2014
A brutal transformação que as grandes cidades experimentaram ao longo do século XX teve dois componentes tecnológicos essenciais: o elevador e o automóvel. Eles mudaram a imagem ambiental urbana e produziram dois estereótipos: a cidade alta e a cidade expandida.
Nova York consagrou-se como cidade dos arranha-céus, mas não do automóvel; Los Angeles, como uma cidade sem limites sustentada pelo carro. No Brasil, em geral, as cidades foram muito receptivas ao edifício alto e modificaram até mesmo suas linhas estruturais pelo privilégio ao rodoviarismo.
Agora, na África do Sul, por ocasião da Assembléia Geral da União Internacional de Arquitetos, em que o Rio foi escolhida como sede do Congresso Mundial de Arquitetos de 2020, concorrendo com Paris e com Melbourne (Austrália), ficaram claros distintos modelos de cidades.
Paris, a metrópole reconfigurada no século XIX, preservou suas características ambientais centrais e cresceu para fora do núcleo apoiada no transporte de alta capacidade. Valoriza o continuum construído e o espaço público.
Melbourne, cidade de grande expansão a partir dos anos 1950, moldou-se pelo automóvel e pela edificação autônoma em relação ao espaço público. Valoriza o edifício isolado e o ‘não lugar’.
Rio, a cidade múltipla, diversa, não se contém nos modelos, e mantém certa ambiguidade nas escolhas que faz. Rejeitou o espigão mas estimula o aumento de volumes a construir. Sua vida é no espaço público – mas será que o valoriza?
Contudo, não são apenas os componentes tecnológicos que conformam as cidades.
A sociedade se molda na cidade e é nela representada. A aparente dissociação entre valores sócio-políticos e a materialidade urbana certamente é ilusória. Isto é, na cidade, a forma e o desejo andam de mãos dadas.
Se o que vemos no nosso quotidiano urbano indigna nossa concepção de civilidade democrática, tal dissintonia há de sinalizar ou um alheamento nosso em relação aos elementos conformadores da cidade ou uma hipervalorização de nossas expectativas destituída de consequências na ação política.
Daí, a importância do conhecimento e do debate sobre os caminhos escolhidos para o nosso desenvolvimento urbano-arquitetônico.
Com a escolha do Brasil e do Rio como sede do maior evento de arquitetura do mundo, o Congresso UIA 2020, sob o tema “Todos os mundos; um só mundo; arquitetura 21”, pelos próximos seis anos teremos a possibilidade de ampliar a reflexão sobre nossas cidades.
Elas ainda são fontes de desigualdade, a ser combatida. Lugares do conflito, são instrumentos da educação para o convívio entre os diferentes e para a tolerância, a ser valorizada. A dimensão espacial desses propósitos é a arquitetura.
A cidade do desejo contemporâneo é acolhedora e inclusiva e se desenha voltada para as pessoas – para todos os homens, mulheres, crianças e idosos, com capacidade de movimento ou com dificuldades para tanto, pedestres ou não, de todas as etnias, religiões e talentos. Os lugares são compartilhados e os serviços urbanos são universalizados. É uma cidade não predatória de território e do ambiente.
A forma urbana que corresponde a tal desejo não se esgota em um modelo.