Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 26/04/2014
Mais uma vez um conflito armado entre traficantes e policiais ocorre em área atendida por Unidade de Polícia Pacificadora, no Rio, e deixa vítimas fatais.
Conflito armado entre traficante e polícia, com vítima, ocorre há muito tempo em grandes cidades brasileiras e, pela recorrência, já é pouco divulgado. Mas a invisibilidade do fato, por sua banalização, não supera as suas consequências seja para a família da vítima ou para a cidadania.
No caso ocorrido em Copacabana, esta semana, foi diferente; houve protesto público nas ruas do bairro que se amplificou em noticioso local e internacional por dois principais motivos: pela proximidade da data da Copa do Mundo e por se tratar de área com UPP. Certamente, são duas situações especiais. Uma, é passageira; outra, espero, há de se constituir em um processo que ajude à redução da desigualdade social das cidades brasileiras.
Convivemos no país com um irônico paradoxo: um dos assuntos mais presentes na mídia é o das favelas; não obstante, o tema parece não figurar no rol de preocupações do Estado brasileiro.
A favela típica não é um fenômeno restrito a poucas cidades. Em São Paulo e no Rio de Janeiro supera 20% das moradias. Ainda, a favela é muitas vezes tratada como o genérico de todo assentamento popular – inclusive loteamentos.
Essas duas tipologias urbanísticas somam cerca de metade das moradias urbanas brasileiras. São muito diversificadas, mas, em geral, são lugares com pouca ou nenhuma infraestrutura, com escassez ou inexistência de serviços públicos, inclusive os de segurança e de regulação. A esse déficit de urbanização e de serviços públicos muitos chamam por “ausência de Estado”.
Assim, criam-se condições para que essas áreas sejam tomadas por interesses marginais, muitas vezes com dominação territorial armada, que impõem jugo discricionário às populações moradoras.
O desafio é justamente superar essa ausência de Estado com a urbanização e a universalização dos serviços públicos, também o de segurança, e fazer vigir aí a Constituição – o que pressupõe políticas públicas consistentes, continuadas, acordadas compartilhadamente como uma verdadeira agenda nacional para a redução da desigualdade social urbana.
A urbanização de favelas é uma experiência exitosa, demonstrada no Rio pelo programa Favela-Bairro, e em outras cidades. Mas não é algo que possa ser realizado sem consideração para com as preexistências ambientais, espaciais e culturais, sem bons projetos urbanísticos e sem cuidados construtivos. Nas áreas atendidas, “o Estado pode circular”, como pede o secretário de segurança do Rio.
Recuperando o território e protegendo a população do arbítrio, as UPPs cumprem papel importante em defesa da cidadania. Certamente é um longo processo e de larga abrangência.
Enquanto isso, precisamos proteger esse instrumento aplaudindo seus acertos, corrigindo suas falhas, sobretudo não tergiversando com eventuais descaminhos de seus agentes. Há uma essencial esperança no seu êxito.
Cada vítima de violência, em área de UPP ou fora dela, atingida por bandidos ou por policiais, não há de morrer em vão. Seu sacrifício não pode ser banalizado e ficar invisível; deve ser acolhido em reforço de nosso compromisso político no caminho da democratização de nossas cidades.
É nesse caminho que o Estado precisa circular.