Sérgio Magalhães
*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 07/07/2012
O Rio de Janeiro desde sua fundação está referenciada a marcos geográficos que a distinguem. Contudo, para deixar de ser geografia e se tornar cidade, o Rio precisa de suas experiências erguidas pelo homem –seus edifícios, seu urbanismo, a vida em seus espaços urbanos. É na mescla entre todos eles que a imagem ambiental da cidade se expressa. E que acaba de receber da Unesco o reconhecimento de Patrimônio Mundial da Humanidade, como Paisagem Cultural.
A imagem ambiental de uma cidade é constituída pela superposição de suas experiências na história. Assim, os elementos simbólicos que a representam exprimem diversos tempos e desejos. Paris tem dois mil anos, mas a Catedral de Notre Dame, exprimindo o espírito do medievo, e a Torre Eiffel, reverência à tecnologia moderna, sintetizam dois tempos da cidade. No espaço de suas ruas, público e livre, certamente está o ideal democrático que a Revolução Francesa proclamou. Flanar pela cidade, como Baudelaire consagrou, tornou-se marco universal.
Também Nova York, com quatrocentos anos, tem nos arranha-céus do século XX a sua imagem. Contudo, são as suas ruas que organizam a vida pública com o sabor que atrai o mundo.
Mas, as cidades não se congelam. Elas têm vida –e se modificam conforme os valores das gerações. Aí reside a condição que as tornam a maior obra da cultura.
Com a República, o Rio se refez como capital e, em simultâneo, incorporou o mar à sua vida urbana. Soube fazê-lo. Preservou sua multiplicidade espacial e promoveu uma feliz sinergia entre a cidade e a praia, a qual tornou ineditamente pública, livre, acessível. A calçada de Copacabana e o Aterro do Flamengo são dois espaços públicos a beira mar que agora ajudaram a alcançar o reconhecimento da Unesco.
Mas, se o século XX foi pródigo em tecnologia que transformou nossas vidas, também o foi em modelos urbanísticos. Os pensadores modernos quiseram cidades onde tudo estivesse definido. Lugar para residir, lugar para trabalhar, lugar para recrear. Edifícios soltos entre jardins que valorizassem o bucólico. Isto, de fato, é a rejeição da vida urbana e a idealização do campo.
É fruto dessa matriz o condomínio fechado que pontua as expansões ricas de nossas cidades –caracterizado pela homogeneidade social. Também o são os grandes conjuntos residenciais populares. Iniciados nos anos 1940, tiveram apogeu com o BNH, e voltaram ao proscênio na última década.
Muitas cidades seguiram esse caminho da especialização também em seus centros, destinados apenas a edificações comerciais e corporativas. No Rio, nos anos 1970, a lei proibiu construir moradia no Centro –e, obviamente, estimulou o esvaziamento que se constata à noite e aos fins de semana.
Com cem anos desses modelos urbanísticos, a reflexão contemporânea tem sido severa. O monofuncionalismo, urbano ou edilício, reduz a interação social. Edifícios isolados promovem espaço público mal definido e pouco usado. A consequente dispersão urbana encarece os serviços públicos e empobrece a cidade; torna-a mais desigual.
Embora reconhecida a inadequação, tais modelos continuam pontuando as cidades. Muitas áreas novas, sobretudo de expansão imobiliária, seguem a receita vencida, por inércia do senso comum, da legislação e da propaganda. (Há de ser útil para a especulação.) Mas isso não é um destino: depende de nós.
Tudo indica que o Rio vive um tempo redefinidor de desejos. Quando a cidade construiu o seu porto, criou uma zona monofuncional e afastou os então bairros litorâneos do mar –agora, tais aspectos deverão ser revistos. Está aí, no centro do Rio, a esperança e a oportunidade de um outro redirecionamento urbanístico que seja exemplar, em acordo com a própria cultura: a salvaguarda do espírito da cidade.
Será necessário, porém, que as novas ocupações reforcem a ideia da integração, com diversidade funcional e social. Edifícios, ao invés de se isolarem, que conformem bons espaços públicos para a vida urbana. Construções também elas multifuncionais, como aquelas que caracterizam os melhores lugares. Certamente, tal determinação há de ser da cidade, não pode ficar ao alvitre de financistas, sejam internacionais ou locais, ou mesmo de empreendedores, com interesses específicos. (O último banqueiro que desenhou pontes no Centro não foi feliz no projeto…)
O espaço público, que o Rio soube exaltar e sabe viver, é o lugar da interação e da diversidade. Ele se opõe à dispersão e à segmentação da cidade. E é essa cidade do convívio como cultura que precisamos garantir para as próximas gerações. Esta mesma que acaba de ser abraçada pela Humanidade através da Unesco.