Diz uma lenda grega que a Esfinge, uma criatura mitológica das civilizações do Egito e da Mesopotâmia, após invadir a cidade de Tebas e destruir todas as suas plantações, teria ameaçado os moradores que não conseguissem decifrar o seu enigma, dizendo: decifra-me ou te devoro. A lição extraída dessa passagem talvez não seja o suficiente para levar a sociedade a refletir sobre o verdadeiro significado das favelas na estrutura da cidade. Mas, de alguma forma, aponta um caminho para decifrar o seu enigma: o conhecimento da sua realidade, da sua complexa organização espacial, das suas particularidades, das suas vicissitudes, dos seus defeitos, das suas qualidades e, principalmente, da sua cultura.
Pode causar estranheza, mas quem hoje circula pelas ruas estreitas das velhas cidades medievais ou pelos caminhos íngremes e sinuosos das ilhas gregas, desfrutando da sua beleza singular, talvez não imagine que aquelas ruas e construções, em tempos remotos, já foram habitat das camadas pobres daquelas regiões. A transformação desses locais em ambientes acolhedores se deve, indiscutivelmente, à preocupação dos povos europeus em respeitar a espacialidade original das suas cidades e, concomitantemente, oferecer melhores condições de vida para os seus moradores. Portanto, não parece impossível antever um futuro semelhante para as favelas cariocas.
A resposta positiva que a sociedade vem dando às formas de integração social com as favelas pacificadas indica que essa possibilidade pode ser perfeitamente viabilizada. Já se percebe um grande contingente de pessoas frequentando regularmente as favelas, participando de eventos e interagindo com a população local sem as preocupações de outras épocas. Para que esses territórios sejam urbanizados e integrados definitivamente ao contexto urbano da cidade oficial basta que se tenha vontade política. Mas não parece que é isso que está acontecendo. A decisão do prefeito de que a urbanização das favelas cariocas seria o principal legado das Olimpíadas de 2016 o levou a determinar a contratação dos 40 escritórios técnicos selecionados no Concurso Morar Carioca, em dezembro 2010, para elaborar os projetos de urbanização e de melhorias habitacionais em diversos agrupamentos de favelas cariocas. Entretanto, até hoje, mais de um ano após a divulgação do resultado do concurso, o processo de contratação das equipes continua tramitando pelos gabinetes da burocracia oficial, sem solução à vista, enquanto as comunidades continuam se expandindo desordenadamente, estimuladas pela demanda de moradia e do crescimento familiar.
Apesar da impressão que se tem de que o progresso jamais passou por perto dessas comunidades, é surpreendente verificar a existência de soluções criativas na produção do espaço construído. O exame dessas preexistências revela uma variedade extraordinária de manifestações técnicas e culturais transmitidas, de geração em geração, através de um rito de passagem que valoriza o conhecimento e o utiliza como instrumento de sobrevivência diante da carência de recursos materiais. A política tendenciosa que preconiza a remoção integral das favelas para em seu lugar construir conjuntos habitacionais não passa de um equívoco prático e conceitual. Nos dias de hoje, não há mais lugar para a velha retórica em defesa de soluções urbanísticas e arquitetônicas que desprezam o patrimônio cultural da cidade e, nesse sentido, a favela é uma dessas expressões. Na verdade, esse pensamento só favorece às empreiteiras interessadas em realizar grandes obras rapidamente e aos políticos que vivem exclusivamente dessas realizações.
É preciso entender que os moradores dessas comunidades possuem histórias de vida e que, nesse percurso, fizeram investimentos materiais e imateriais que não podem ser desconsiderados. Nas favelas e nos loteamentos irregulares a cultura se manifesta através da moradia individual e da organização social nos espaços públicos. Portanto, a vivência dessas pessoas, incorporada aos projetos de urbanização e de melhorias habitacionais, é o melhor caminho para a adequação espacial dessas comunidades e, consequentemente, para a sua integração ao tecido urbano da cidade. Ignorar o fato de que a favela faz parte da cultura carioca há mais de um século é negar a sua preexistência e, também, o seu modo espontâneo de habitar. Portanto, não há como justificar o emprego de soluções universais para resolver problemas particulares e de caráter específico. Vivemos em uma época de profundas transformações, onde, certamente, as culturas locais terão um papel relevante a desempenhar. Em meio ao turbilhão de ideias, conceitos e interesses diversos, somente o tempo poderá dizer se, de fato, o enigma da favela foi decifrado. Quem viver verá.
LUIZ FERNANDO JANOT é arquiteto e urbanista. E-mail: lfjanot@superig.com.br