*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 30/07/2011
O controle da inflação permitiu que uma agenda de premências, a que estavam submetidos os brasileiros, desse lugar a uma agenda de possibilidades. Nesta semana, o Brasil tornou-se o quinto maior destino de investimentos internacionais. Grandes recursos tornam-se disponíveis para realizações antes inimagináveis.
Ter ou não ter inflação já não deriva de causas naturais ou metafísicas. Apesar de os componentes financeiros serem intangíveis, nós sabemos que eles são construídos. No entanto, em assuntos com grande presença material, como é uma cidade, nem sempre estamos atentos às causas que produzem os efeitos em nosso cotidiano. Parecem-nos frutos da natureza, embora sejam frutos da cultura.
Lembro de um adolescente carioca dos anos 1990 que se mostrou surpreso quando seu pai comentou sobre o absurdo de as calçadas estarem tomadas pelos automóveis :“Mas não é onde devem ficar?” Ao longo da vida do jovem, os passeios tinham sido “naturalizados” como lugar de veículos.
Estacionar automóveis nas calçadas parecia inevitável no Rio do fim do século. E, para muito poucos, era um despropósito levar-se o cachorro a passear e brindar as áreas entre carros com “lembranças”do programa.
No entanto, a situação mudou, para melhor.
Fumava-se em ônibus, em restaurantes e até em hospitais. A rua estava disponível para a fumaça negra emitida pelos coletivos. A Lagoa recebia esgotos sanitários in natura e as línguas negras chegavam à areia das praias, as quais ainda serviam de lixeira a céu aberto. Nas eleições, cartazes colados por todo lado. Tudo isto era natural.
A percepção de naturalização decorre muitas vezes da repetição reiterada, que nos faz crer o fenômeno como imutável. Mas, em outras situações, trata-se de um modo de sublimar determinado problema.
Em 1937, quando o Rio já tinha quase 300 mil moradores em favelas, um decreto proibiu que elas constassem do mapa da cidade. Não estando no mapa, talvez inexistissem… Para melhorar o trânsito, suprimiu-se o bonde. Seria natural que o automóvel fechasse as ruas. E, quando se percebeu que o setor financeiro se mudava para São Paulo, proibiu-se construir novas moradias no Centro da cidade— imaginando-se que a área ficaria disponível para grandes corporações financeiras. Nem estas vieram, nem moradores— e o esvaziamento consolidou-se.
Deixar o problema prosseguir em busca de sua naturalização ou impor uma solução meramente ideológica, são ações divergentes na aparência apenas.
Jane Jacobs, a americana que escreveu o livro seminal “Morte e vida de grandes cidades”, alertava, a partir da experiência dos Estados Unidos, que não necessariamente a abundância de meios produz melhores cidades. Em seu país, o crescimento econômico também construiu cidades inóspitas e ambientes degradados.
É que as razões da boa cidade não são encontráveis em prateleiras de mercado, prontas ao uso. Mas são constituídas na complexidade da vida coletiva, no âmago da cultura. Com bons princípios, nos dizia Jacobs. E com bons projetos.
Se, felizmente, temos hoje possibilidades de investir em nossas cidades, nem por isso podemos perder energias e recursos. Nosso passivo urbanístico e ambiental não é pequeno. A Lagoa está em franca recuperação. Mas a Baía de Guanabara ainda espera o seu reerguimento.
A cidade metropolitana do Rio, deixando-se como está, acelerará o processo de expansão predatória de ocupação do território e de ampliação da miséria. Mas é possível estancá-lo. Precisamos institucionalizar políticas setoriais metropolitanas, como a de transporte público. É bom o exemplo de São Paulo, que há mais de trinta anos mantém carteira de projetos no BNDES em busca de financiamento para o metrô. ”Naturalmente” os trens não se transformam em metrô; com projetos, sim.
Tampouco é apenas com grandes investimentos que a boa cidade se constrói. Nossas calçadas já não são dos automóveis! Contudo, nosso espaço público ainda é maltratado, cheio de obstáculos. Se tivermos o desejo de espaços públicos qualificados, bons projetos contarão com a participação cidadã para a sua implantação.
Foi possível impedir que se fumasse nos ônibus e evitar a fumaça negra.Se tivermos projeto, poderemos alcançar no médio prazo que nossos ônibus sejam amigáveis, confortáveis, com acessibilidade universal, silenciosos: que sejam urbanos.
Ainda por longo tempo nossas cidades terão uma agenda de premência. Saneamento, mobilidade e habitação são temas cruciais. Mas já é possível objetivarmos uma agenda paralela de ações mais disseminadas, em que também seja ampliada a nossa adesão à cidade e evidenciadas as energias que a população está disposta a oferecer. O carnaval que voltou às ruas é uma evidência do desejo carioca por uma cidade aberta, livre, alegre. Segura e sem grades.