*Artigo publicado originalmente no Globo de 07/05/2011
A cidade é o maior artefato da cultura. E a cidade contemporânea é um fenômeno em dimensões tais que supera todas as experiências sociais precedentes.
O objeto da arquitetura deixou de ser o edifício excepcional que se construía artesanalmente e tornou-se o conjunto de intervenções modificadoras do ambiente construído. A arquitetura é a cidade contemporânea em suas múltiplas conformações, desde o domicílio familiar até às grandes estruturas ambientais em escala territorial.
Com a industrialização, em resposta ao desafio das grandes demandas, a arquitetura despiu-se dos cânones, dos ornamentos, das simetrias. Voltou-se para a efetividade. Uma nova estética foi proposta. O simples, o despojado, oracional assumiram o centro da beleza. Novas tecnologias foram concebidas, compatíveis com a multiplicação.
Tudo novo, nada do que fora herdado seria compatível com os novos tempos. Os arquitetos voltaram – separa cidades ideais e edifícios exemplares, os quais deveriam cumprir o papel de faróis do futuro.
Quando o tempo das certezas absolutas ruiu, percebeu-se que a cidade que resistira à avalanche destrutiva modernista tinha valores importantes a manter. Ela já não era mais necessariamente descartável. A cidade produzida pelas multidões se manifesta em toda sua concretude.
As edificações espetaculares não resumem a arquitetura que o século XX produziu. Mas se encontra na grande cidade um dos esteios do desenvolvimento que o mundo experimentou. Foi a cidade quem deu abrigo ao sonho urbano, quem permitiu o avanço da educação, da saúde, do lazer. Por precária com que possa ser percebida, é ela a grande arquitetura deste século XXI.
Mas não é única.
Os novos tempos, diferentemente do que imaginavam os modernos, não é o lugar da padronização, mas da diversidade. É a multiplicidade que caracteriza o ambiente contemporâneo. Assim, a arquitetura é também diversa, múltipla, e acolhe inúmeras manifestações. Ela é complexa no fazer e, obviamente, no ensinar. Já não se retém nos gestos geniais autônomos. Paisagem, escala, ambiente, patrimônio são atributos que ajudam a configurar uma arquitetura contemporânea que não se apoia mais na exceção, mas na qualidade em sinergia com o existente, na contiguidade. É uma nova ética e uma nova estética.
Mas nossas cidades permanecem sob tutela de legislação calcada nos velhos conceitos. Há uma verdadeira inércia epistemológica a promover obras que nascem velhas —onde os valores se apoiam em índices inespaciais, em contas imobiliárias, referenciados ao domínio do lote, não ao contexto. Ao objeto mais do que às suas relações.
Avultam objetos arquitetônicos absorvidos na autor referência. Construções exibicionistas, na ânsia de se afirmar em ícones, ainda que vazios de significado. Quase big brothers arquitetônicos, cujos 15 minutos de fama infelizmente se estenderão por décadas.
Especialmente dos equipamentos públicos, os quais carregam consigo uma representação social, é esperada uma atenção ao espaço coletivo.
Nesse sentido, é bem-vindo o decreto do prefeito do Rio determinando que novas construções sejam previamente avaliadas quanto ao estarem em acordo com os ambientes que as acolhem. Ele por certo evitará que outras obras-primas da insolência ambiental sejam erguidas na nossa cidade. Será tanto mais desejável que, em passo seguinte, o decreto seja transformado em lei, dando-lhe perenidade.
Estamos em um bom momento para essa reflexão
O país está crescendo, grandes recursos são destinados à construção. Infraestruturas estão sendo projetadas, aeroportos, conjuntos corporativos, bairros inteiros. Mas é preciso que cada obra seja qualificadora do ambiente. Aí, no caso das obras públicas, suas escolhas não podem continuar sendo por menor preço de projeto. Pois, em um passo seguinte, para além de aditivos na construção, transformam-se em monumentos à desconsideração da cidade.
Precisamos incorporar a dimensão contemporânea da sustentabilidade, seja na produção edilícia ou na urbana. Nesse aspecto, desde a década de 1990, o país tem tido boas experiências, o Rio, em especial, com intervenções qualificadoras do ambiente existente. Programas de urbanização de favelas e os de tratamento ambiental de centros de bairros são exemplos que se disseminam.
Mas, por complexo que se tenha tornado o fato arquitetônico, é essencial que seja compreendido na sua inteireza cultural. E o debate das expressões-limites, das arquiteturas que nos encantam e das que nos agridem, é muito desejável.
O debate da arquitetura é um bom caminho para a cidade.