*Artigo publicado originalmente no Globo de 09/04/2011
Todos desejamos nossas cidades bem tratadas, funcionais, amigáveis. Sim, mas no cotidiano urbano estamos acostumados com cenas de desrespeito às posturas públicas, de uso inadequado do espaço coletivo, de descaminhos no trato de bens comuns.
Mas, se tais atitudes surpreendem o visitante, nem sempre afetam o olhar local. Quais seriam as razões desse quadro de incoerência entre o desejado e o vivido?
Penso que entre elas se encontra a ainda baixa democratização da cidade, que se expressa por assimetrias importantes na prestação dos serviços públicos.
A baixa democratização, infelizmente, não é um discurso. A prática urbana brasileira demonstra a grande escassez de serviços públicos nas áreas pobres. Sabemos (e nos acostumamos) que nelas há carência de esgoto e de abastecimento de água, falta transporte, que o espaço público é mal tratado, manutenção e conservação quase inexistem, que é intermitente ou ausente o serviço público de segurança.
As assimetrias intraurbanas têm seu corolário na baixa exigência. Como a cidade é una, e vivida por todos, os padrões de exigência tornam-se muito tolerantes — e se rebatem pelo conjunto, desqualificando-o. Aceita-se conviver com inacessibilidade nos passeios, obstrução no trânsito, vazamentos nas redes de infraestrutura, buracos sucessivos, manutenção precária, enfim, incivilidades.
Urbanisticamente, há uma consequência pouco estudada: a mobilidade demográfica na cidade. Isto é, por carência dos serviços públicos, degradam-se algumas áreas e os moradores são estimulados a se mudarem para outros bairros. Muitos o fazem para áreas de expansão. Mas, na medida em que as cidades se expandem, mais rarefeitos e mais assimétricos tendem a ser os serviços.
No Rio, há o exemplo da Zona Norte suburbana. Mesmo estando muito bem situada no contexto da metrópole, milhares de seus moradores optam por emigrar à conta das condições insatisfatórias da área, que se eternizam. O enfraquecimento da região é explicado em geral pelo esvaziamento industrial, mas é preciso considerar o papel da degradação dos serviços públicos, em especial o da segurança. É ilusório achar que será possível combater a desigualdade por decurso de prazo — sem políticas específicas.
Veja-se o caso da retomada dos morros da Penha e do Alemão, em uma política específica que se opõe à degradação. Retomado o coração da Zona Norte, tendem a melhorar os serviços públicos, e os bairros da região, hoje deprimidos, poderão ter um rejuvenescimento no seu parque imobiliário e habitacional, retendo seus moradores.
Tínhamo-nos esquecido que a cidade é o lugar da liberdade. “O ar da cidade liberta”, diz o provérbio medieval. E que o papel fundador do Estado é garantir a segurança. Ela garantida, o jogo da democracia poderá redirecionar prioridades.
Assim, o desafio se voltará para os demais serviços públicos urbanos, no objetivo de reduzir assimetrias injustas.
Muitas cidades brasileiras têm feito o esforço de construir infraestruturas, buscando ampliá-las para as áreas mais carentes. No Rio de Janeiro, a urbanização de favelas já tem boa experiência e é meta da cidade, assumida pelo prefeito, de assegurar que até 2020 todos os assentamentos informais estejam plenamente urbanizados. Esse programa, Morar Carioca, se constituiria como o principal legado social dos Jogos de 2016. A tarefa não será fácil, mas é possível.
Contudo, seja no Rio ou nas cidades que buscam equalizar a oferta de infraestrutura, a manutenção dessa nova realidade implicará em custos financeiros permanentes. Em compensação, serão reduzidos os custos sociais e as perdas de oportunidades e de empreendedorismo que o ambiente degradado acarreta. De todo modo, será preciso uma atenção especial para que os investimentos não se percam. É um trabalho que extrapola os governos e precisa envolver os cidadãos.
Quando as sociedades ficaram atentas para as desigualdades sociais, concebeu-se um acompanhamento que pudesse ajudar a percebê-las de modo sintético: o Índice de Desenvolvimento Humano, o IDH. Ele tem sido muito útil nas comparações e verificações dos avanços conseguidos.
Quem sabe devamos pensar em indicadores de atendimento dos serviços públicos urbanos? Algo como um IDC, índice de democratização da cidade, que ajude a monitorar a redução das assimetrias na prestação dos serviços. Que nos informe como eles estão no cotejo entre as cidades, mas também que possam informar sobre os bairros de uma mesma cidade.
Afinal, as cidades do século XXI, motores do desenvolvimento, requerem ser lugares seguros, funcionais, democráticos. No Rio, reduzidas as assimetrias, aflorarão com mais força as virtudes da cidade existente, múltipla, diversa, amigável. E o cidadão poderá fundir o desejo e a realidade em sua prática urbana.