Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 12/03/2011
Na velha Praça Tahrir, espaço urbano central do Cairo, foi onde vimos o povo egípcio manifestar-se, nessa onda que percorre os países árabes.
E aqui, onde o carioca se manifesta politicamente? Na Cinelândia, na Candelária, na Rio Branco. Onde o incrível fenômeno dos blocos festeja o carnaval? Na rua, no espaço público.
Uma praça, todos sabemos, é uma área livre, pública, cercada de construções. Mas, fosse apenas edifícios + área livre, seria uma imensa maquete. É o uso que a qualifica. Isto é, o espaço urbano é o material e o espiritual somados na história, construindo a memória e a identidade coletivas.
Os cidadãos se reconhecem como parceiros ao compartilharem imagens e memórias. A identidade coletiva cimenta valores e permite que o embate quotidiano se estabeleça em bases mutuamente aceitas. É um verdadeiro acordo social promovido pelo usufruto dos bens culturais, dos espaços e dos signos coletivos.
Embora, hoje, essa construção social seja também formada por outros meios da cultura, desde o rádio e a TV até aos tuíteres e internets, o espaço urbano mantém a prerrogativa de locus da interação social mais livre, a que se dá entre os diferentes. Na efervescência do imprevisto nos espaços da vida real — esta é a cidade. É o que faz a diferença entre as verdadeiras e emocionantes cidades e as idealizadas e racionais aglomerações funcionalistas.
No caso do Rio, há um diferencial na conformação dos espaços urbanos. Por sua originalidade, escala e beleza, o Pão de Açúcar, o Corcovado, os Dois Irmãos, a Penha, o maciço da Tijuca, também compõem o espaço urbano carioca e se transformam em signos permanentes. Isso dá estabilidade singular à paisagem construída, perpassando os séculos. A destacar que esses elementos permanentes também o são para Niterói, São Gonçalo e Baixada Fluminense. Isto é, são referências para a cidade metropolitana.
Mas o espaço urbano pressupõe vitalidade. Ele exige sintonia com as forças dinâmicas da sociedade. É o passado e é o presente.
A Cinelândia, no Rio, foi a principal centralidade política, social e cultural brasileira na maior parte do século XX. Como manter sua vitalidade? É uma questão que não se esgota na preservação das edificações. Por certo, a saída da Câmara de Vereadores da Cinelândia, anunciada algumas vezes, não é solidária com o fortalecimento do lugar. Mas a recuperação do Teatro Municipal, sim. Melhorar o fluxo viário, reduzir a poluição, manter a atratividade, são medidas importantes. Mas, entre os fatores preservadores da Cinelândia como espaço fundamental do Rio sobretudo se encontra o reforço das centralidades ainda localizadas no Centro, o núcleo da metrópole.
O Aterro do Flamengo, obra dos anos 1950, transforma-se em parque sob desenho de Burle Marx. É dos mais importantes espaços do Rio. Mas sua borda, a Praia do Flamengo, sofre desde então com a decadência ambiental da Baía de Guanabara. Com a despoluição da baía é possível a requalificação que permita ao parque e à praia potencializarem o papel estratégico do conjunto para o desenvolvimento urbano do Centro e da Zona Sul. Em simetria com a transformação da zona portuária pelo projeto Porto Maravilha, o Centro terá mais um instrumento para sua recuperação.
Esse conjunto, Aterro-Centro-Porto, pontuado pelos ícones geográficos, configura-se como o mais importante espaço urbano metropolitano brasileiro. A garantia de sua vitalidade parece ser essencial para a própria vitalidade do Rio.
Isso está em sintonia com a experiência recente de grandes cidades mundiais. Nelas, busca dinamizar-se a cidade onde ela está, aproveitando-se vazios e áreas degradadas, prestando-se bons serviços públicos, melhorando a mobilidade, valorizando os espaços significativos. E essa diretriz é inexoravelmente oposta à expansão fácil do tecido urbano.
O arquiteto britânico Richard Rogers, prêmio Pritzker de 2007 (o Nobel de arquitetura), ora em visita ao Rio, defende uma cidade compacta a partir das pré existências e dos espaços urbanos. Essa recomendação faz ao Rio, e também a fez a Paris como um dos dez prestigiados arquitetos mundiais chamados pelo governo francês a pensar o futuro de sua metrópole. “A compacidade deve ser a primeira regra, é um conceito que gera eficácia, interação e urbanidade.”
O Rio precisa de seus espaços urbanos não por saudosismo. Representação, memória, identidade coletiva, são qualidades de alto valor referenciadas ao espaço urbano construídas social e historicamente.
O espaço urbano é vida e estabilidade; somos nós e nossa vivência no lugar, que nos somamos às gerações precedentes na construção da identidade e da memória comuns. Nós mudamos permanecendo os mesmos; algo assim se pediria aos espaços.