*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 02/06/2012
“a obra-prima no futebol e na arte tem de ser imperfeita.”
Neste século 21, felizmente!, não temos as varinhas mágicas que pensávamos possuir, e que transformariam a realidade segundo nosso ponto de vista. Típicas do modernismo, elas diziam que tudo seria perfeito. No urbanismo, buscávamos desenhar a cidade que fosse o berço da nova sociedade igualitária. Nós nos iludimos que alcançaríamos o modelo de cidade perfeita.
É próprio da perfeição reconhecer-se como única: tudo que dela seja diferente será imperfeito. Assim, sob um manto idealizado, constrói-se a intolerância e justifica-se o preconceito. Logo, o que desafiasse o modelo ideal de cidade precisaria ser rejeitado.
Escreveu Nelson Rodrigues em uma de suas crônicas: “Enquanto o Fluminense foi perfeito, não fez gol nenhum. A partir do momento em que deixou de ser tão Flaubert, os gols começaram a jorrar aos borbotões, pois a obra-prima no futebol e na arte tem de ser imperfeita.” Essa frase foi lembrada por Arnaldo Jabor, recentemente, no Globo, com o seguinte comentário: “Existe coisa mais ‘contemporânea’?”
Com a mudança de paradigma, nossa contemporaneidade passa a admitir a “imperfeição”, isto é, aquilo que é diferente do modelo idealizado. O urbanismo incorpora a diversidade espacial como valor. Não mais uma só forma urbana –a da perfeição, mas tantas quantas as condições específicas, históricas, geográficas e culturais promoverem. A multiplicidade morfológica certamente será uma riqueza das cidades.
Contudo, se a perfeição não é mais um objetivo, as enormes desigualdades intra-urbanas precisam ser superadas com a conquista da equidade. Em que cidade? Aquela que se preserve como lugar do encontro e das trocas sociais, que reconheça as preexistências ambientais e culturais e com elas construa o seu futuro.
Neste nosso tempo, precisamos partir do esforço coletivo que desassombrosamente construiu nossas grandes cidades, seus núcleos e suas periferias, seus bairros, seus loteamentos, suas favelas. E, a todos, conferir-lhes as condições de plena cidadania.
Os valores cívicos da consolidação da democracia não são algo autônomo, à parte da vida prática. Tampouco o reconhecimento dos direitos cidadãos se esgota na garantia da diversidade religiosa, étnica e sexual. Para além dessas conquistas se inserirem no âmbito da Constituição, elas se desdobram na construção do espaço onde vivemos. O direito à cidade é consubstanciado na possibilidade de convívio pleno do espaço público, da interação, e, igualmente, em adequadas condições de mobilidade, de habitação e de prestação dos serviços públicos, inclusive o de segurança, indistintamente, a toda a população.
A urbanização das favelas consolidadas, que se mostram como história e cultura há gerações, é outra das faces positivas deste novo tempo de fortalecimento da cidadania na diversidade. Assim, passou a ser possível identificar nas favelas qualidades até então obscurecidas e enfrentar seus efetivos e enormes problemas de outro modo, que não a remoção. Não mais uma só perfeita obra-prima, inalcançável por definição; mas uma obra coletiva de plena vida.
Urbanizar tais assentamentos envolve uma metodologia sofisticada, criada e desenvolvida em trabalho compartilhado entre arquitetos, governo, moradores, profissionais de outras especificidades e construtores. Esse compartilhamento, em si, já se expressa como uma obra dos tempos atuais. Tem dupla fundamentação urbanística, aparentemente paradoxal: promover as condições urbanas exigidas pela contemporaneidade e o reconhecimento das preexistências ambientais e culturais.
Sendo a questão comum às grandes cidades brasileiras, esse processo de urbanização tem tido desenvolvimento em muitas delas. No caso do Rio, tal trabalho acaba de receber mais um reconhecimento internacional: o prestigiado prêmio City to City Barcelona FAD Award 2012. Ele foi conferido à cidade do Rio de Janeiro pelo governo da Catalunha e pela cidade de Barcelona conjuntamente com a organização espanhola “Fomento das Artes e do Projeto”. A justificativa do prêmio FAD 2012 é pelo programa de urbanização de favelas que a cidade vem desenvolvendo desde os anos 1990. O júri o considerou “referência mundial de política urbana, processo que tem convertido o Rio em uma cidade mais justa e equitativa”. E especificando: “a melhor iniciativa de melhora urbana internacional”.
Neste século 21, os objetivos são maiores do que aparentam. Já não satisfaz a busca da cidade da perfeição, que leva à paralisia e à intolerância. Agora, desejamos a obra-prima (imperfeita) que faz jorrar aos borbotões os gols de uma vida urbana democraticamente qualificada.