É recorrente o questionamento sobre licenças concedidas pelas prefeituras para construir edifícios muito altos, que podem descaracterizar o ambiente urbano. É um tema que preocupa muitos cidadãos por conta da possível quebra da escala urbana (para além de muitas vezes avaliarem que pode haver interesses escusos nessas concessões).
Antes da modernidade (e da industrialização), a forma das cidades resultava da conjunção entre edificações de representação do poder e, sobretudo, de edificações construídas segundo as possibilidades da arquitetura vernacular, produto cultural de gerações sucessivas. Os ditames regulatórios eram singelos, uma vez que as incertezas sobre o que construir eram muito pequenas.
Com o crescimento das cidades e com o advento das tecnologias modernas – o elevador, o concreto armado, o aço e outros materiais construtivos –, que permitiram construir grandes edifícios, a definição da forma da cidade passou a constituir um processo complexo. O traçado das ruas, os volumes das edificações, os usos, o patrimônio cultural, a paisagem, as infraestruturas, os serviços públicos, entre outros elementos, todos interagem para a configuração espacial do urbano.
A arquitetura vernacular já não dá conta de determinar os espaços públicos na cidade contemporânea. As cidades precisaram promover sistemas de planejamento para conceber os planos urbanos, por meio dos quais se objetivaria o bom espaço para a boa convivência social, o melhor aproveitamento dos recursos naturais e econômicos, a garantia dos valores estéticos compartilhados pela sociedade e o bom funcionamento dos serviços públicos. Para isso, a definição dos volumes a construir passou a ser um dos mais importantes instrumentos do planejamento: admitem-se determinadas dimensões a edificar para que os espaços coletivos resultantes sejam o melhor para a cidade e para os cidadãos. Esse é o princípio elementar que dá ao Estado a legitimidade para regular a forma da cidade.
Porém, de algum tempo para cá, tal princípio está sendo desmerecido. A forma da cidade já não é mais regulada segundo o interesse na produção dos melhores espaços urbanos, mas como instrumento para aumentar o orçamento municipal. Isto é, permite-se ao governo vender a autorização para que se construa ou um volume maior ou um uso diferente daqueles estabelecidos no plano da cidade.
Justifica-se que, com isso, o governo poderia aplicar em áreas mais pobres o que auferir de áreas mais ricas.
Trata-se de um instrumento que permite controvérsia. Afinal, o espaço público é de todos, moradores ou não de determinada área. O bem-estar coletivo não é algo destituível de uma base material, o espaço urbano, que deve ser o mais adequado, o melhor, o mais bonito possível e a todos acessível. Há uma questão ética subjacente: se o plano que determina os volumes a edificar objetiva o melhor espaço, como desconstituí-lo por dinheiro? O estado não é dono da cidade (e de seu espaço). Pode o governo vender o espaço? Não o terreno, mas o espaço? O espaço, que é configurado pelos volumes das edificações, pelo uso que nelas ocorre, pelas pessoas que aí circulam e no qual constroem suas memórias?
O poder público está autorizado pelo contrato social e tem a legitimidade de promover a legislação urbanística que objetive a melhor cidade. Por isso mesmo, a forma da cidade não é algo a ser negociado.
Não é o tamanho do lote ou o interesse imobiliário que devem ditar a forma urbana. É o espaço urbano, que resultará dos edifícios construídos, a baliza ética dessa questão.
A cidade não é da prefeitura. A cidade é da cidadania, é do cidadão.
Revista “Ciência Hoje”, 327, jun 15. Coluna “CIDADE INTEIRA”.