*Artigo publicado originalmente no jornal O GLOBO de 12/01/2012.
É a sociedade que poderá melhorar o trânsito, não são as engenharias. Tal como ocorreu com a segurança pública e as UPPs, é preciso que desejemos um novo padrão de mobilidade em nossas cidades.
Nosso tempo se caracteriza por um processo crescente de intercâmbio de mercadorias e de fluxos. Mas também por grande incremento nas relações interpessoais, o que tem exigido maior deslocamento físico das pessoas, apesar do uso amplo dos novos meios eletrônicos de comunicação. A mobilidade cresce com o tamanho das cidades, sendo, no Brasil, três vezes maior nas cidades grandes do que nas pequenas.
Além dos deslocamentos rotineiros casa-trabalho (e casa-estudo), aumentam os deslocamentos não-ocupacionais, para lazer, compras e saúde, o que demanda mais viagens e conexões entre os circuitos de transporte. Sendo condição essencial da vida de hoje, a mobilidade se constitui como um direito cidadão.
Nas grandes cidades é indispensável o concurso de vários modos de transporte, sem hegemonias, formando redes. Assim, modos de alto rendimento, metrô e trem, são seguros e rápidos para médias e longas distâncias –típicos nos deslocamentos casa-trabalho. Os ônibus e VLTs (os antigos bondes) são eficientes nas pequenas e médias distâncias, multiplicando conexões. A bicicleta pode ter maior participação complementar na mobilidade. Para andar a pé, que continua o modo dominante de mobilidade para pequenas distâncias, inclusive em grandes cidades, a questão central é a qualidade do espaço público, que demanda calçadas regularizadas, seguras, e com plena acessibilidade universal.
Contudo, é o automóvel o mais importante modo de transporte que o século XX pôs à disposição do homem, desempenhando papel crucial na vida contemporânea. Tanto, “que criou para todos, com o consentimento dos cidadãos, uma dependência irreversível, a uma escala inédita”, no dizer do professor francês Gabriel Dupuy. Não obstante, sua hegemonia precisa ser revista.
A expansão incontrolável das cidades, os tempos de viagem crescentes, a desestruturação do espaço público, levaram a hegemonia do transporte individual à contestação –mesmo em países ricos, e que fizeram dele um instrumento construtor de cidade, como os EUA.
No Brasil, as principais metrópoles foram estruturadas a partir das linhas de trens urbanos e de bondes, mas tiveram essas redes extintas ou abandonadas na década de 1960, em benefício do modo rodoviário e da indústria automobilística. (A política industrial, sim, foi bem sucedida: no período de 2003-2010, enquanto a população brasileira urbana cresceu 13%, a frota de veículos aumentou 66%: cinco vezes mais.) Nossas cidades estão cada vez mais difíceis de viver e circular, evidenciando a insustentabilidade da política rodoviarista e do privilégio ao automóvel, tanto em relação ao ambiente quanto à cidadania. (Por seus custos financeiros, o IBGE aumentou a participação do automóvel na matriz do custo de vida, como noticiou O Globo.)
Para ilustrar, vale nomear alguns resultados do recente “Relatório 2010 – Sistema de Informações da Mobilidade Urbana da ANTP – nov. 11”, que inclui as cidades brasileiras com mais de 60 mil habitantes.
Nas grandes cidades, a população fica três vezes mais tempo em coletivos do que em automóveis (e percorre o dobro em distância). Sabendo-se o que os usuários de automóveis enfrentam de congestionamentos e o padrão arcaico dos nossos coletivos, a diferença fica ainda mais expressiva. Mas, no país, dos custos de mobilidade referidos à manutenção do sistema viário, o poder público gasta 14 vezes mais recursos associados ao transporte individual do que ao transporte coletivo: 14 x 1.
Do consumo total em energia (Toneladas Equivalentes de Petróleo), 73% é com transporte individual e 27% com transporte coletivo. A emissão de poluentes segue o mesmo padrão: 64% e 36%, respectivamente.
É questão de cidadania que os deslocamentos casa-trabalho e casa-estudo, que são quotidianos e impositivos, e envolvem metade dos deslocamentos nas metrópoles, melhorem substancialmente e sejam tratados em sua dimensão social. Também a economia urbana é atingida, pelo ônus no deslocamento de pessoas e de mercadorias. O próprio transporte individual continuará crescentemente congestionado –sem solução, enquanto não houver prioridade para o transporte coletivo e metropolitano de alto rendimento –e em rede com os demais modos.
Depois de 17 anos no Congresso, acaba de entrar em vigência a lei que cria a Política Nacional de Mobilidade Urbana. Ela pode ser um instrumento de redefinição de prioridades, mas o será se a ação política da sociedade ajudar a refazer a escolha do Brasil dos anos 1960, quando optou pela hegemonia do transporte rodoviário urbano.