*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 18/12/2010
O primeiro passo é a retomada do território. O momento seguinte precisa durar a eternidade: a presença definitiva do Estado.
A vida urbana contemporânea exige uma multiplicidade de bens, equipamentos, serviços, ações que dão suporte ao quotidiano de milhões de cidadãos em interação contínua. A cidade é o maior artefato da cultura, milagre da civilização que permite a convivência de interesses diversos, razões distintas, e, em muitos casos, de expectativas em conflito. Desse cadinho, ou desse caldeirão, emergem as possibilidades que fazem da cidade o desejo das multidões –e, também, das individualidades.
Mas é óbvio que essa complexa construção é social, não é da ordem da natureza. Na cidade, nada é natural, tudo é construído. Da paisagem ao objeto, tudo é cultura. Da destruição do meio-ambiente à sua preservação, tudo é pensamento e ato. A paz e a violência, também.
Nós nos encontramos, no Brasil, em tempo de inflexão, onde deixamos de ser inocentes e nos transformamos, porque queremos, em um país complexo. Entre as evidências está a produção de uma rede de cidades que engloba 85% da população. Temos duas dezenas de metrópoles. Duas megacidades abrigam 1/5 da população urbana.
As cidades crescem em complexidade e o Estado não as acompanha na prestação dos serviços que lhe são inerentes, como Justiça e Segurança.
Nossas cidades se expandem em áreas sem pleno Estado e deixam atrás outras com igual escassez. A demonstração está na violência urbana, mas também na carência de saneamento, transporte e habitação. É como ocorre tipicamente na Zona Norte suburbana carioca e igualmente em tantas metrópoles brasileira.
Sabemos que não é questão trivial dotar plenamente o conjunto urbano de serviços públicos adequados, mas é condição necessária ao desenvolvimento de um país que se proponha moderno, atuante globalmente. Para além, contudo, a democratização da cidade é uma imposição ética.
Nada é natural na cidade. Por décadas foi construída a violência. Agora, a experiência nos alertou sobre a indissociabilidade dos fatos urbanos, o que não mais nos permite ignorar os desdobramentos predatórios que a anomia, mesmo que localizada, impõe sobre o conjunto social.
A paz também é uma construção. Tivemos muitas derrotas que abalaram a confiança coletiva. Contudo, há uma enorme vitalidade localizada no âmago da população que faz com que, mesmo em dificuldade, ela busque prosperar, estudar, se desenvolver. É evidência disso a produção habitacional autônoma e popular, que, sem estímulo ou financiamento, supera várias vezes as metas oficiais *. A cidade tem energia represada que pede liberação para a paz e o desenvolvimento.
É nesse âmbito que os acontecimentos no Complexo do Alemão podem sinalizar um novo olhar, onde a escassez de Estado passa a ser compreendida como o problema.
Com a experiência das UPPs, seguida da retomada da Vila Cruzeiro e do Morro do Alemão, a proteção constitucional dos territórios começa a assumir centralidade no desejo coletivo. Constrói-se o entendimento sobre a indispensabilidade do Estado brasileiro assumir-se em suas plenas responsabilidades. Se necessário, reformulando o que antes fora pactuado entre os três níveis federados de governo.
Garantir a integralidade dos territórios sob a égide da Constituição não é de interesse apenas local. Tampouco o é atributo somente de governo: envolve igualmente a sociedade –imprensa, academia, profissionais, associações. Mas a experiência nos diz que o Rio não deverá sustentar sozinho o patamar de constitucionalidade exigido. Não porque lhe faltem recursos financeiros, o que não é fato, como demonstrado há dias aqui neste jornal. Nem porque parte importante das causas da violência não se esgote em seus limites, sejam territoriais, jurídicos ou institucionais; o que, sim, é fato. Não é apoio que precisa, é co-responsabilidade que exige da União. Não por privilégio, mas para a promoção dos deveres exclusivos de Estado.
Garantida a base constitucional, abolida a barbárie, a vitalidade da população saberá prosseguir. Tal energia fará aflorar novos desafios: a institucionalização metropolitana, a recuperação suburbana, a urbanização dos assentamentos populares, um sistema de mobilidade contemporâneo, entre outras construções sociais. Mas já então à altura da civilização que queremos alcançar.