O Globo 11-mai-2019
Ao completar vinte e cinco anos do início do Programa Favela-Bairro, impõe-se a pergunta: a urbanização de favelas ainda é questão relevante? A metodologia ainda é válida?
Um breve lembrete: o FB é um de seis programas da Política Habitacional criada pelo prefeito Cesar Maia (1993-96) e continuada pelo prefeito Luiz Paulo Conde (1997-2000). Em oito anos, interviu em 155 favelas, com 550.000 habitantes. O programa construiu infraestruturas, equipamentos sociais, abriu ruas, eliminou áreas de risco. Objetivava integrar a favela à cidade
Na década seguinte o FB perdeu fôlego, trocando de nome em 2009 para Morar Carioca, afinal submerso.
É claro, a favela ainda é central para o Rio. A tragédia da Muzema é inconteste. E, como viu-se em recente seminário realizado pelo Instituto de Arquitetos do Brasil e UFF, o problema alargou-se.
Convém recordar dois fundamentos originais do Estado moderno: o monopólio da força legítima e a ordenação do território.
Ao deter o monopólio da força, o Estado, em contrapartida, garante ao cidadão a segurança indispensável à vida em comum; os conflitos serão dirimidos pela lei, não pela violência
Ao deter o poder de ordenar o território, o Estado, em contrapartida, garante ao cidadão a qualidade do espaço construído, onde se desenrola a vida coletiva.
O monopólio da força e a ordenação do território constituem um binômio. Onde falha um o outro claudica. Mas a ordenação do território (ou controle urbanístico, no caso das cidades), é a ponta avançada da presença do Estado no ambiente cidadão. Desde os tempos coloniais, cabia ao poder local regular onde e como construir. Era essa a mestra de todas as suas atribuições. Com a crescente complexidade da vida urbana, ela mingou.
É que a ordenação do território na sociedade contemporânea precisa estar casada com políticas públicas que a viabilizem. Tais como a de provisão de moradias, segundo as condições de renda das familias; a implantação das infraestruturas necessárias à vida moderna; e, sobretudo, a universalização dos serviços públicos urbanos. O Brasil não tratou disso, todos sabemos.
Tenhamos como marco para as responsabilidades do Estado a Constituição de 1988. Como ela se materializa?
No âmbito dos chamados direitos sociais, a Constituição trouxe bons avanços. As instituições caminham, apesar de percalços, malfeitos ou caneladas. Não obstante, a Constituição não está territorializada: em grande medida ela não desceu à planície (ou não subiu ao morro) onde mora a maioria da população. Em boa parte dos ambientes populares, aqueles dois fundamentos do Estado moderno não se fazem efetivos.
Nesses espaços não vige a Constituição. É o caso da Muzema. E também o da Maré, região de conjuntos residenciais oficiais, que passou a ser vista como favela.
Sem cobrir a cidade inteira, grande parte das áreas populares e de classe média formais degradam. Com áreas formais reduzidas, aumenta o preço dos imóveis legais, inviabiliza-se o acesso a parcelas crescentes da população. Estrangula-se a cidade, reduz-se o seu valor político.
Os dois fundamentos originais do Estado moderno estão muito feridos: o Estado não detém o monopólio da força em grande parte dos territórios urbanos do país nem o controle sobre a ordenação do espaço construído. O retraimento do Estado aumentou claramente nos últimos vinte e cinco anos.
Como reverter esse quadro?
O caso da Muzema é apenas a ponta de um gigantesco iceberg que se desloca pelo mar da abstenção do Estado, afogando nessas águas a energia e a esperança dos cidadãos. Não haverá reforma da Previdência, tampouco radicalizações à esquerda ou à direita, que reponha o desenvolvimento na mesa do brasileiro se não se enfrentar o desafio colocado pelo abandono da cidade.
A urbanização de favelas continua indispensável; a ideia do Favela Bairro poderá ser recuperada para acompanhar, quando existir, uma política essencial, a da Cidade Inteira.