*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 21/10/2010
O respeito ao meio ambiente associado à noção de desenvolvimento sustentável, marca da Rio-92, chegou para ficar. É atitude solidária em relação ao planeta e à própria humanidade. Agora mesmo, nas eleições de 2010, foi pano de fundo de boa parte das opções de voto. Em análise a propósito desse pleito, a jornalista Míriam Leitão considera que “há uma compreensão maior de que a sustentabilidade não é uma palavra oca, mas uma nova forma de estruturar o projeto econômico”.
A sociedade se mobiliza tentando promover as bases de um novo estágio civilizatório — menos predador, com menos pobreza e desigualdade. Esse conjunto adquire valores éticos para além das objetividades que lhe são inerentes — e é provável que se constitua em diretriz para o século XXI.
Embora tais conceitos sejam portadores de significados suficientemente fortes a justificarem a autonomia que lhes reconhecemos, é desejável situá-los no espaço em que se manifestam com densidade. Assim, sustentabilidade, pobreza e desigualdade precisam ser referenciadas às cidades.
A humanidade já vive majoritariamente em cidades. No Brasil, é quase a totalidade (85%) dos brasileiros que mora urbanamente. Contudo, podemos dizer que as cidades estão sendo compreendidas nessa dimensão renovadora da política e da ética contemporâneas? Estão sendo tratadas em consonância com a sustentabilidade? Com o papel a desempenharem na redução da pobreza e da desigualdade?
É na cidade que se encontram a raiz e a promessa daquele novo estágio civilizatório.
Fontes de desequilíbrio ambiental e social se expressam no urbano em duas importantes funções: a habitacional e a mobilidade.
A ocupação extensiva do território, em baixa densidade e com carência de saneamento, multiplica fatores predatórios do meio ambiente e amplia a desigualdade entre parcelas da sociedade. A desigualdade de renda é potencializada por moradias sem infraestrutura adequada, insalubres, mal localizadas em relação ao trabalho e às oportunidades de desenvolvimento pessoal. A histórica falta de crédito habitacional consome esforços familiares na promoção do domicílio que poderiam ser canalizados para a educação e a saúde. Assim, reforça a desigualdade em gerações. Mesmo com os novos incentivos à moradia, o Brasil continua produzindo cerca de 80% dos novos domicílios urbanos sem qualquer financiamento.
Está na mobilidade urbana outro dos fatores de desequilíbrio tanto ambiental quanto social. A opção que o país fez pelo modo rodoviário, lá nos anos sessenta, continua pujante. Está na mobilidade urbana outro dos fatores de desequilíbrio tanto ambiental quanto social. A opção que o país fez pelo modo rodoviário, lá nos anos sessenta, continua pujante. Ela é poluidora; dilapidadora de território; mas é sobretudo gastadora de energias sociais. No interesse do desenvolvimento sustentável e da redução da pobreza e da desigualdade, há que se priorizar o transporte de massa. Os metrôs e os trens urbanos precisam constituir-se em redes metropolitanas.
Há uma terceira fonte em contramão: o isolamento modernista entre funções urbanas (ou se mora, ou se trabalha, ou se recreia), que afasta trabalho e residência, multiplica percursos, promove guetos e enfraquece a interação social. Setores urbanos onde o mínimo deslocamento exige motorização é modelo condenado por sua insustentabilidade.
A cidade contemporânea está a rever essa matriz predadora, tal como ocorre na experiência que está sendo promovida em Londres, para os Jogos de 2012. Cada novo edifício precisa atender aos requisitos de sustentabilidade e o conjunto se caracteriza por recuperar uma área degradada, quase central, em estratégia de interesse metropolitano. Lá, 75% dos recursos são necessariamente investidos na promoção de um legado social e urbanisticamente consistente.
Felizmente, no Brasil já se vão constituindo movimentos político-sociais para construção de uma agenda pela sustentabilidade em suas amplas possibilidades. Daqui a dois anos, festejaremos 20 anos da Conferência da ONU para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento. A Rio+20 será outra oportunidade para o país assumir compromissos em consonância com o desenvolvimento sustentável — vale dizer, com o futuro das cidades. E o Rio de Janeiro, por seu protagonismo em 1992, por certo quererá estar à frente nessa agenda.
Talvez queiramos assumir o desafio de universalizar o saneamento, despoluir a Baía de Guanabara, estancar a sangria da expansão predadora e redirecionar o transporte público. E, se prosseguirmos na urbanização dos assentamentos informais, trazendo-os à legalidade, protegidos todos os territórios pela Constituição brasileira, sem vez à violência armada, estaremos efetivamente adentrando o estágio civilizatório ao qual desejamos que o Brasil esteja destinado. Será o nosso desenho do século.