*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 10/11/2012
Tal como a literatura, a pintura, a música, entre outras manifestações do espírito humano, também a arquitetura e o urbanismo expressam o tempo e o contexto em que se apresentam. Sendo trabalhos de autor, também são produtos embrenhados no coletivo.
Há raros exemplos no mundo de cidades produzidas tão claramente como expressão de um tempo e de determinadas circunstâncias como Brasília.
A maestria de Lúcio Costa é que permitiu a estruturação simples e monumental da nova cidade; a invenção de Oscar Niemeyer é que ofereceu a síntese formal capaz de comunicar um novo tempo. A união entre os projetos urbanístico e arquitetônico fez surgir imagens tão belas e tão impregnantes que deram a certeza de que começava um novo país. Essa convicção levou a que, tendo se realizado o concurso público para escolha do Plano Piloto em 1957, a nova capital pudesse ser inaugurada já em 1960.
É claro que os arquitetos de Brasília, dos mais bem informados de seu tempo, sabiam o que acontecia em outros lugares, conheciam as arquiteturas mais prestigiadas, e delas recebiam influências importantes — e também nelas conformavam novos valores.
Este preâmbulo é para lamentar o que está sendo proposto para a capital do país. O governo do Distrito Federal acaba de contratar uma empresa de Cingapura para elaborar plano econômico-urbanístico que oriente o desenvolvimento da cidade nas próximas cinco décadas: “Brasília 2060”. (Aliás, contratada sem concurso público, sem licitação.)
É louvável que o governo do DF busque planejar o futuro de Brasília.
É necessário que cada cidade tenha seu sistema de planejamento, seus planos e projetos — concebidos e debatidos amplamente, para terem legitimidade. Planos para a composição do território no médio e no longo prazos. As cidades não podem ser projetadas apenas para um mandato, como uma decisão de governo.
Brasília cresceu e se multiplicou, tão sem cuidados adequados como as demais grandes cidades brasileiras. Assim, a “capital da esperança”, Patrimônio Cultural da Humanidade, precisa desenhar-se para além do Plano Piloto, do qual é indissociável.
Certamente, é um trabalho urbanístico sofisticado, que — à altura daquele talento fundador da cidade — exige a compreensão das dimensões políticas, sociais, econômicas e culturais em jogo. Brasília não é de um governo. Brasília é a cultura brasileira plasmada no espaço do Planalto Central.
Planejar-se o futuro de Brasília a partir de pranchetas localizadas em Cingapura é um ato de lesa-cultura. O país não pode dar a si mesmo um atestado de deslumbramento ingênuo ante expressões urbanísticas e arquitetônicas de outro contexto e de outra cultura — as quais, aliás, e com todo o respeito, se apresentam como transplantadas dos países mais desenvolvidos.
O Brasil tem 20 metrópoles, duas megacidades, uma população urbana de 175 milhões de pessoas, que tem demonstrado determinação invulgar ao construir o seu sistema de cidades.
A capital federal é o símbolo material desse espírito.