*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje nº 298.
É comum ouvirmos dizer que a cidade é o maior e mais importante produto da cultura. Tal como a literatura, a pintura, a música, entre outras manifestações do espírito humano, também a arquitetura e o urbanismo expressam o tempo e o contexto em que se apresentam. Sendo trabalhos de autor, também são produtos embrenhados no coletivo e nas influências a que se associam.
Há poucos exemplos no mundo de cidades produzidas tão claramente como expressão de um tempo e de determinadas circunstâncias como Brasília. Não apenas nas decisões políticas que permitiram sua concretização, mas, em especial, no próprio desenho arquitetônico-urbanístico que orientou sua materialização no cerrado brasileiro.
Foi a maestria de Lucio Costa que permitiu a estruturação simples e monumental da nova cidade; foi a invenção de Oscar Niemeyer que ofereceu aos edifícios a síntese formal capaz de imediatamente comunicar um novo tempo. Foi da união entre os projetos urbanístico e arquitetônico que o país e o mundo conheceram as imagens tão belas e tão impregnantes que deram a certeza de que, ali, se construía um novo país. Essa convicção permitiu que, tendo se realizado o concurso público para escolha do plano piloto em 1957, a nova capital pudesse ser inaugurada já em 1960.
É claro que os arquitetos de Brasília, dos mais bem informados de seu tempo, sabiam o que acontecia em outros lugares, conheciam as arquiteturas mais prestigiadas, e delas recebiam influências importantes – e também nelas conformavam novos valores.
Todo este preâmbulo é para lamentar o que está sendo proposto para a capital do país. O governo do Distrito Federal acaba de contratar uma empresa de Cingapura para elaborar um plano estratégico econômico-urbanístico que oriente o desenvolvimento da cidade nas próximas cinco décadas: “Brasília 2060”.
É louvável que o governo do DF busque planejar o futuro de Brasília. Como as demais grandes cidades brasileiras, a capital federal se ressente da ausência de políticas públicas consistentes, carência que o país precisa superar para garantir seu pleno e democrático desenvolvimento.
É necessário que cada cidade tenha seu planejamento, seus planos e projetos; concebidos e debatidos amplamente, para terem legitimidade. Planos que permitam alcançar a ordenação do território no médio e no longo prazo, como um instrumento de Estado. Pela importância que têm para os cidadãos e para o desenvolvimento nacional, as cidades não podem ser planejadas apenas para o dia seguinte, como uma decisão de governo.
Assim, também a nossa ‘capital da esperança’, Patrimônio Cultural da Humanidade, precisa desenhar seu futuro urbanístico para além do núcleo original, do qual é absolutamente indissociável. Nessa simbiose está a maestria requerida. É um trabalho requintado, sofisticado, que – à altura daquele talento fundador da cidade – exige a compreensão das dimensões políticas, sociais e culturais em jogo. Brasília não é de um governo. Brasília é a cultura brasileira plasmada no espaço do planalto central.
Planejar-se o futuro de Brasília a partir de pranchetas localizadas em Cingapura é um crime de lesa cultura. A capital federal não pode dar a si mesma um atestado de deslumbramento ingênuo ante expressões urbanísticas e arquitetônicas de outro contexto e de outra cultura – as quais, aliás, e com todo o respeito, se apresentam como transplantadas dos países mais desenvolvidos.
O Brasil tem 20 metrópoles, duas megacidades, uma população urbana de 175 milhões de pessoas, que tem demonstrado uma capacidade invulgar de construir um futuro com determinação, democracia e esperança.
A capital federal é o símbolo material desse espírito.