Ao se comemorar os 450 anos do Rio de Janeiro, vale realçar uma característica fundamental da cidade que estamos festejando. De certo modo, homenageamos as cidades brasileiras, em geral.
Entre as famosas obras do prefeito Pereira Passos que deram uma nova feição ao Rio, no início do século XX, a construção da Avenida Beira Mar talvez seja a de mais profunda influência.
Claro que o símbolo mais conhecido é a Avenida Central, hoje Rio Branco. A Beira Mar, porém, com 5 km, indo da Cinelândia a Botafogo, foi além da função de ligação viária Centro-Zona Sul. Teve pelo menos duas outras importantes consequências: definiu a paisagem geo-cultural da cidade e uniu a cidade e o mar.
Ao fazer a ligação pela orla, criou um ponto de vista que coloca a arquitetura da cidade em primeiro plano e, ao fundo, os grandes ícones geográficos, Pão de Açúcar, Corcovado e Maciço da Tijuca. Antes, vistos em conjunto desde o mar, a geografia dominava a paisagem. Associada à arquitetura, a geografia culturaliza-se. A simbiose é a nova imagem do Rio.
As cidades, qualquer cidade costeira, não se integravam ao mar. (Veja o Palácio do Catete, de frente para a terra, de costas para a água.) A Beira Mar garantiu a praia para o uso público, um novo conceito que Pereira Passos ainda replicou na Avenida Atlântica, em Copacabana. Criou-se um paradigma de ocupação para a costa brasileira, onde a praia é pública e o seu acesso é livre – diferentemente, aliás, do que ocorre nos Estados Unidos, França, Portugal, Espanha, entre outros países.
Demonstram os cronistas, o carioca sempre amou a vida no espaço público – lugar da interação. Sua identidade é indissociável dessa característica. A obra de Pereira Passos somou aos já então qualificados espaços públicos interiores o novo espaço público de excelência da praia. É da união entre eles que, na década seguinte, emerge a expressão “Cidade Maravilhosa”, a cidade da bem-aventurança, idealizada desde a fundação. Essa feliz expressão deve estar fazendo o seu centenário por agora, junto com os 450 anos do Rio.
No Brasil, nós não temos os guetos étnicos, religiosos e culturais que embasam ódios mundo afora. (O carnaval é uma das evidências de como a população pratica e quer a integração.) Nós temos uma só nação, de muitas cores e grandes desigualdades. Mas, urbanisticamente, nas últimas décadas, de modo descuidado, importamos a segmentação social dos shoppings, dos condomínios fechados e do monofuncionalismo, parentes do multiculturalismo onde cada grupo quer seu lugar exclusivo. Não é um bom caminho – está aí o mundo a demonstrar que a segregação e a intolerância andam juntas.
Em grande parte das cidades brasileiras, abandonamos a cidade misturada em busca da miragem imobiliária mais ordinária. Nossos espaços urbanos para a convivência são descaracterizados na falta de manutenção, na perda de população, na violência, no enfraquecimento econômico e na invasão rodoviarista. São cidades cada vez mais difíceis.
As grandes cidades têm, mesmo, muitos problemas. Mas elas são o motor do mundo contemporâneo. Precisam de políticas que garantam o seu papel fundamental de lugar da sociabilidade e valorizem a sua qualidade de vida – base sobre a qual constroem seu protagonismo.
O acordo entre a alma da cidade e os seus rumos urbanísticos é uma condição para a boa cidade. O Rio de Janeiro tem bem sucedida experiência nesse encontro. A grande obra de Pereira Passos consolidou um modo de vida que encheu de orgulho a cidade e o país. É persistir no bom caminho.
Ciência Hoje, fev 2015