Sérgio Magalhães organizou o Congresso Mundial de Arquitetos, que seria sediado no Rio e termina virtualmente nesta quinta (22)
Não faz sentido que as cidades continuem crescendo infinitamente se a população não cresce junto, diz o arquiteto e urbanista Sérgio Magalhães, 76. Caso isso aconteça, aprofundaremos as desigualdades , que baseiam nossos espaços urbanos.
Segundo ele, é preciso urgentemente redesenhá-los e isso é uma tendência global que ficou ainda mais evidente com a pandemia da Covid-19. A conclusão veio do 27° Congresso Mundial de Arquitetos, que acontece de domingo (18) até esta quinta (22).
Magalhães preside o comitê executivo do evento, que pela primeira vez em 70 anos seria sediado no Brasil no ano passado, no Rio de Janeiro. A cidade recebeu então o título de primeira Capital Mundial da Arquitetura pela Unesco e União Internacional de Arquitetos (UIA) e se preparava para a conferência.
Mas ela teve que ser adiada e realizada virtualmente. Em compensação, os 20 mil inscritos quadruplicaram para mais de 80 mil do mundo inteiro, e agora todo um conjunto de reflexões ficará disponível na internet, segundo ele, “para fazer uma cidade do século 21 uma cidade melhor”.
Abaixo, ele fala sobre as mudanças na arquitetura no pós-pandemia, o papel dela na redução das inequidades e o que sobrou da Olimpíada carioca.
A partir do congresso, você enxerga alguma nova tendência na arquitetura a partir da experiência traumática do último ano?
Os projetos apresentados no congresso têm apontado para a necessidade de readequação ou redesenho das cidades, no sentido de superar as enormes desigualdades que elas contêm hoje e que a pandemia deixou completamente evidente. Foram trazidos muitos projetos sobre saúde urbana, por exemplo.
Há também uma consciência coletiva de que precisamos adequar as cidades às mudanças climáticas e ao planeta. É uma questão ética fundamental oferecer água, saneamento, bom transporte público e preservar os territórios devastados pela ocupação predatória.
Isso do lado dos desafios das cidades. Mas tem um outro lado absolutamente relevante que a pandemia trouxe: a hegemonia da economia, sobretudo financeira, sobre os agentes produtores do bem-estar coletivo está com seus dias contados. A ideia que ainda prevalece de que quando a economia melhorar as cidades melhorarão já não tem mais a força que tinha. Ficou claro que os fatores estão todos interligados e que as boas cidades são capazes de melhorar economia, política, cultura, sociedade, inovação. Elas são influenciadas por esses agentes e também os influenciam.
Cresceu o número de despejos e ocupações no último ano. É possível agora reverter essa aceleração da falta de habitação?
A falta de moradia não é uma questão da pandemia, é o que caracteriza grande parte das cidades brasileiras, com as favelas e periferias. E mesmo a cidade formal tem questões muito relevantes a serem enfrentadas. A segregação espacial dos ricos é tão detestável quanto a dos pobres. Mas você toca num assunto que tem uma dimensão ainda maior. No Brasil estamos com a população estável; essa geração já não cresce mais e a partir dos anos 2030 vai começar a diminuir. Então a ideia de crescimento infinito das cidades precisa ser revista, não tem mais base.
Se as cidades não crescem demograficamente, não têm por que crescer territorialmente, se expandir. Se fizerem isso, vão perder qualidade de vida, porque significa que as pessoas que estão morando em bairros consolidados vão se mudar para bairros novos, que tendem a ser desprovidos de infraestrutura. Essa é uma questão central para o desenvolvimento brasileiro nos próximos tempos, e também muito mais complexa pelo fato de que
nesta geração o Brasil vai construir mais da metade do número de domicílios que já construiu ao longo de toda a sua história.
Como assim?
Seguimos o modelo ocidental da sociedade em famílias, que tendem a ser cada vez menores. Hoje o Brasil tem em média três pessoas por família, então cem pessoas precisam de 33 casas. Até 2030, esse número tende a se aproximar de duas pessoas por domicílio —que já é acima do que a Europa tem hoje. Então para cada cem pessoas serão necessárias 50 casas, com a mesma população. Parece um pouco futurista, mas não é. Quando eu nasci [em 1944], a média brasileira era de seis pessoas por domicílio. E onde você vai construir essas casas novas? Se expandir, vai continuar construindo casas na precariedade ou não vai construir e vai aumentar o número de famílias em desabrigo.
Há alternativas. O Brasil tem economia suficiente para construir dentro do território hoje ocupado, que tem muitos vazios urbanos, muitas áreas degradadas, edificações abandonadas. Se a cidade não se redesenhar, vamos postergar o desenvolvimento brasileiro. Não é só uma questão de esperança e sonho, é uma questão pragmática.
Com a necessidade de se ficar em casa, levantou se a discussão sobre a constituição das moradias nas favelas e periferias, onde se vive amontoado. A pandemia trouxe mais consciência sobre isso?
Acho que sim. E trouxe mais consciência também em relação à cidade formal, onde tem muita gente morando muito mal, em apartamentos inadequados, com pouca relação com o ambiente urbano. Esse conjunto de situações precisa ser compreendido por todos. Historicamente, grandes traumas como epidemias e guerras mudam a sociedade. É possível que desse patamar a gente evolua para algo melhor.
Como a cidade poderia ser um instrumento de mudança da saúde?
Em vários aspectos. Na mobilidade, por exemplo. A Dinamarca investe em cidades mais amigáveis para o pedestres e ciclistas, reduz as condições de circulação de automóveis poluidores e investe em transporte público de alta eficiência. Isso afeta a qualidade da saúde pública.
Que necessidades urgentes o Brasil tem? Abastecimento de água potável para toda a população. Isso é saúde. Colocar esgoto tratado para todos, coisa que hoje metade não tem. Então não é só a casa insalubre, que tem má
ventilação, insolação, desconforto em relação ao clima. Não basta produzir hospital, não basta tratar da saúde quando ela já está corrompida, é preciso prevenir.
O arquiteto Paulo Mendes da Rocha, que morreu neste ano e foi homenageado no congresso, defendia cidades que amparassem não só as necessidades de seus cidadãos, mas seus desejos. Concorda?
A cidade existe pelo desejo das pessoas. Que desejo é esse? De viver com os outros. Ouvi recentemente a respeito da pandemia que, quando o homem das cavernas descobriu que a caverna era um bom lugar para morar, descobriu simultaneamente que o melhor da vida estava fora da caverna. A história das cidades é a história da interação social.
A cidade existe também pela esperança das pessoas de que nela terão as melhores oportunidades de educação, saúde, emprego. É isso que mantém a cidade como lugar de desejo ao longo dos milênios. As pessoas estão em permanente conflito com suas idiossincrasias. A cidade é rica justamente porque permite essa junção de desejos e opiniões. Isso é essencial e precisa ser preservado. A cidade é o antigueto, a antissegregação.
Voltamos agora a realizar a Olimpíada que, cinco anos atrás, foi sediada no Rio em um período de muitas obras para a cidade. Hoje, o que ficou e o que foi desperdiçado, em termos de arquitetura?
A Olimpíada foi um momento muito importante para o Rio e para o Brasil, mas o que se desperdiçou mais foi a esperança. Porque ela foi tratada como uma panaceia, como a superação de todos os problemas, e não é. Sob o ponto de vista urbanístico, a Olimpíada no Rio teve investimentos importantes, mas em grande medida eles se deram a partir de projetos muito antigos, e alguns teriam que ter tido certa revisão.
Mas eu acho que o mais significativo nisso foi a concentração de recursos na Barra da Tijuca [zona oeste], o que não deveria ter acontecido. Se os recursos tivessem sido melhor distribuídos, teriam sido mais proveitosos para a cidade.
Você costuma defender que houve um crescente distanciamento do Estado brasileiro da responsabilidade do que se constrói nas cidades. O que quer dizer com isso?
A cidade não é um produto da natureza, e sim da cultura. Então precisa ser tratada, cuidada. Não pode ter uma cidade e dizer: está feita a cidade, se vire. Essa atitude leva à degradação urbana, à perda de investimentos. A cidade precisa ser planejada a médio e longo prazo, e isso é uma função de Estado, não de governos, que acabam a cada quatro anos. Isso já ocorre em países como França, Inglaterra, Espanha, Portugal, EUA, e precisa acontecer aqui.
A iniciativa privada não pode suprir isso. Ela produziu as cidades muito bem até meados do século 19, mas isso mudou quando as cidades deixaram de ser vernaculares, construídas pelas pessoas, e passaram ao conceito de cidade industrial, com o surgimento de locais com mais de 1 milhão de habitantes como Londres e Paris. Nesse momento, as iniciativas de construção de cidade deixaram de ser privadas para ser públicas. A França até hoje tem uma função chamada “arquiteto de Estado”. A iniciativa privada tem muitos atributos, possibilidades de intervir na cidade, mas não tem nem pode ter a responsabilidade de definir os rumos que ela vai tomar.
Entrevista publicada na Folha de São Paulo, 22/7/2021