*Arquivo publicado originalmente na revista Ciência Hoje, edição 285.
Sabemos que a cidade é o maior artefato da cultura; portanto, uma expressão coletiva. Assim, a sua construção deve ser responsabilidade de todos, tanto dos governos como da sociedade. Não obstante, a cidade brasileira tem sido em grande medida uma produção exclusivamente das famílias.
Há uma clara defasagem entre a idealização que fazemos sobre a cidade e os instrumentos que tornamos disponíveis para a sua concretização.
Como se explica essa aparente contradição?
Entre os pilares do pensamento contemporâneo se encontra a crescente conscientização sobre a necessidade da preservação e da defesa do patrimônio, tanto o cultural como o natural. A sustentabilidade passa a ser uma exigência ética fundamental. Igualmente, fortaleceu-se a noção de interdependência entre os agentes sociais urbanos. É cada vez mais claro o desejo de produzirmos cidades menos desiguais, de oportunidades melhor distribuídas.
Para além do discurso, isso implicaria em adoção de medidas mitigadoras em relação aos danos já constatados, mas, sobretudo, significaria políticas públicas em consonância com os novos compromissos.
Nossas cidades brasileiras tem um passivo ambiental considerável.
Grande parte dos sistemas hídricos se encontra submetida a despejos sanitários e industriais que os tornam quase moribundos. Não obstante, as cidades continuam sem política de saneamento abrangente, implicando em que o caso de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, com 800 mil habitantes, e com menos de 1% de seus domicílios urbanos ligados à rede de esgotos tratados, não seja um exemplo isolado. Ao contrário, é um panorama que inclui milhares de cidades, inclusive capitais.
É alto o passivo ambiental decorrente da opção pelo transporte rodoviário nos deslocamentos casa-trabalho. E não apenas pela poluição atmosférica –o que uma mudança tecnológica nos veículos poderia minorar. O mais relevante é que o transporte rodoviário é reconhecidamente predador de território. Suas vantagens de fácil acesso estimula a ocupação urbana, é verdade, mas se torna um grave problema na formação de cidades cada vez menos densas –a demandar mais serviços, mais infraestruturas, mais equipamentos, mais territórios. Contudo, esse é o modo quase exclusivo de transporte urbano no Brasil.
No caso da moradia, a ausência de políticas públicas de crédito para a produção habitacional – situação geralmente tratada como dependente de fatores macro-econômicos, distanciados do fenômeno urbano – resultou na grande expansão do parque habitacional brasileiro sustentado basicamente pela poupança prévia das famílias, sem apoio coletivo. Assim, apenas uma em cada cinco moradias urbanas brasileiras foi construída com alguma participação dos governos ou recebeu algum tipo de financiamento, público ou privado. Essa média continua valendo mesmo com a implementação do programa Minha Casa, Minha Vida. E, se tal condição é evidência de vitalidade do povo brasileiro, é, também, matriz dos assentamentos irregulares e favelas.
Isto é, três vetores majoritariamente constituintes da cidade, infraestrutura, transporte e moradia, tem sido deixados à responsabilidade do cidadão, com minoritária participação coletiva.
É inegável que houve avanços políticos importantes nas últimas décadas, em direção à consolidação do direito à cidade, o qual compreende a possibilidade de o homem viver no território urbano em consonância com as exigências da vida contemporânea. Contudo, em que pese os ganhos políticos alcançados, esse ainda é um direito que, embora formalizado constitucionalmente, não se encontra plenamente conquistado na prática da vida urbana. Enfim, trata-se de um direito individual que precisa ser suportado coletivamente.
Preservação ambiental, sustentabilidade, equidade urbana: é nossa tarefa ajudar a transformá-las de conceitos idealizados em prática. Para tanto, nossas cidades carecem ser compreendidas como construção compartilhada.