O GLOBO set 16
Em poucos dias, o Superior Tribunal de Justiça julgará grave questão relativa à cultura e ao espaço urbano – que, por circunstâncias, se apresenta processualisticamente sem o relevo que merece. O tema é concurso de projeto.
Todavia, tal tema não é desconhecido.
Logo após a independência, os Estados Unidos trataram da nova capital. George Washington decidiu começar as edificações pela residência oficial, a Casa Branca, e promoveu um concurso de arquitetura onde foram apresentados nove estudos. Detalhe: Thomas Jefferson, futuro presidente, então Secretário de Estado, participou do concurso como arquiteto que também era – e perdeu. O júri considerou melhor proposta a do arquiteto James Hoban.
Já em 1418, o concurso para a cúpula da Catedral de Santa Maria del Fiore, em Florença, foi vencido por Filippo Brunelleschi, cuja ideia inovadora é considerada marco da Renascença.
Mas concurso não é só para obras primas. Na era vitoriana, a Inglaterra promoveu cerca de 2.500 concursos, média de um por semana, para hospitais, escolas e até para igrejas paroquiais. (O Parlamento é de 1835.) O regulamento de concursos britânico data de 1839.
A França tem igual experiência. Concurso é regra da administração pública, com mais de 2.000 concursos de projetos de arquitetura e urbanismo ao ano. Compreende-se porque há tanta obra de alta qualidade.
Aqui, o concurso não é de hoje. No Rio, a maioria das edificações da então Avenida Central foi objeto de concurso, como o Theatro Municipal, de 1909, de autoria dos arquitetos Passos & Guilbert. Na ata de fundação do Instituto de Arquitetos do Brasil, de 1921, consta a defesa do concurso para qualificar as obras e ampliar o acesso à profissão. Brasília teve seu Plano escolhido por concurso, vencido por Lucio Costa.
A UNESCO, pela XXª Conferência Geral, de 1978, da qual o Brasil é signatário, recomenda aos países membros a adoção do concurso de projeto segundo normas e princípios que indica. (Como: júri técnico; contratação do vencedor para desenvolver o projeto; garantia dos direitos de autor.) Após tal recomendação, nossa lei 8.666, de 1993, adotou o concurso como modalidade de licitação para “serviços técnicos profissionais especializados”.
Assim, a Prefeitura do Rio fez concurso para os dezessete projetos Rio-Cidade. E, em 1994, para o programa Favela-Bairro, selecionando trinta equipes. Há pouco, a Estação Antártica do Brasil foi definida por concurso vencido por jovens arquitetos, que elaboraram os projetos arquitetônico e complementares, com excelente proveito reconhecido pela Marinha. Os principais projetos para os Jogos Rio 2016 foram objeto de concurso, como o Parque Olímpico, o Parque de Deodoro e o Campo de Golfe, além da Vila da Mídia (não construída).
Não obstante, agora, tal modalidade de licitação (sim, concurso é licitação para contratar o melhor, não é premiação), internacionalmente reconhecida – recomendada pela UNESCO – tem interpretação jurídica peculiar submetida ao STJ. É que em instância inferior prevaleceu novel entendimento de que o concurso se esgota na premiação do estudo preliminar, cabendo à administração pública contratar a outrem, que não o autor, o detalhamento do projeto vencedor, com nova licitação para cada etapa constituinte de um projeto: anteprojeto, projeto executivo e projetos complementares. É o projeto fatiado.
Nesse entendimento, a integridade da autoria é desconsiderada. A qualidade e a inovação são tratadas como mercadoria a ser comprada em fatias. De fato, é uma interpretação tabajara sem consonância com conceitos universais constituintes da cultura e da civilização.
(Você pediria a um médico para diagnosticar, a um outro para receitar, e a um terceiro para avaliar a evolução? Quem iria a um advogado para que concebesse a tese, a outro para peticionar, a um terceiro para atuar?)
O tema é concurso de projeto. Mas, é a própria noção de projeto que vai a julgamento: projeto como pesquisa, construção de conhecimento, como inovação artística e tecnológica. O Brasil não irá à frente maltratando a cultura.