O GLOBO 24 fev 18
A resposta para a violência urbana não se dará no curto prazo, sabemos, o que não exclui a necessidade de medidas de emergência. Mas, tal como ocorreu com as UPPs, não serão suficientes. Também não se trata de complementá-las com um “banho de governo” nas áreas hoje dominadas. A resposta é mais complexa: precisamos de um novo acordo político.
A vida em cidade é prova da disponibilidade da humanidade para o convívio e o bem estar. Imagine: quantas graves questões de convivência podem ocorrer em uma família? Em um edifício, em um bairro? No caso de uma metrópole como o Rio, onde vivem doze milhões? Que milagre é esse que permite a convivência?
O compartilhamento de valores morais e éticos, que constroem a coesão social, é o cerne do poder viver em paz. Não é a repressão que faz a paz. Vivemos em um mundo totalmente acessível e interligado; não é mais possível desconhecer os legítimos direitos de cidadania. Nessa sociedade aberta, como desejamos, a coesão é obra política.
O sociólogo-historiador Jorge Caldeira, no instigante “História da riqueza no Brasil”, reuniu estudos que demonstram como foi desconsiderado o papel da sociedade de economia não exportadora, distribuída pelo território, desde os tempos coloniais. Também no Império prevaleceu tal percepção: “Tanto quanto os costumes dos súditos analfabetos, tudo que se referia aos interesses do mercado interno era invisível para o governo imperial”.
Esse entendimento ainda vigora. As políticas hegemônicas no Brasil continuam reforçando as desigualdades de renda, como mostram recentes relatórios divulgados pelo Ipea e por pesquisadores liderados por Thomas Piketty, e como fica explicitado no quadro urbano brasileiro.
De fato, o fenômeno da urbanização e da metropolização, que ocorre desde meados do século XX, de gigantesca potencialidade econômica e social, não foi bem compreendido pelos governantes e pela própria sociedade brasileira. O país não deu bola para suas cidades. Dando continuidade ao roteiro histórico da exclusão, relegaram à própria sorte grandes parcelas de sua população e de seu território urbano.
Esse abandono pelos órgãos públicos sinaliza para bandidos: podem dominar! A evidência é a Zona Norte suburbana do Rio. Tendo detido 45% das indústrias do município e o segundo polo em ICMS, com grande capacidade de pequenos empreendedores e enorme atividade cultural, permanece abandonada, com muitas áreas dominadas, inviabilizando o seu desenvolvimento.
Políticas assim concebidas não correspondem ao esforço das famílias nem apoiam a qualidade urbana. É exemplo a dita política habitacional: 80% das moradias são produzidas sem financiamento, na poupança do tijolo a tijolo, enquanto os recursos são destinados às empreiteiras, que produzem os 20% restantes. E, quando se noticia que houve crescimento na venda a varejo de materiais de construção, fruto desse esforço popular, o sindicato empresarial da construção informa que houve queda no emprego em 2017, reivindicando mais verbas. Para construir o que? Conjuntos residenciais segregados, longe de tudo, logo dominados.
A segurança tem vasto campo a ser corrigido, é óbvio; quiçá a intervenção federal melhore algumas áreas. Mas a crise é do sistema urbano brasileiro por déficit de cidadania, que se manifesta no Rio de modo agudo. Saibamos aproveitar uma eventual atenuação da violência e do medo para buscarmos novos caminhos para a construção de uma paz duradoura.
Teremos eleições daqui a poucos meses. Que elas possam levar à promoção de novos acordos, aqueles que firmarão o compromisso de incorporação de toda a cidade ao estado democrático. Não é trabalho para alguns meses, por certo. Nem para partidarização política. Como nunca antes na nossa história, é essencial promover o encontro do país com a sua cidadania.
“Sir, se deseja ter uma ideia exata da magnitude desta cidade, não basta ver suas amplas praças e ruas, mas sim examinar detidamente os inúmeros becos e ruelas. É aí que consiste a maravilhosa imensidão de Londres” .
Que esta compreensão do escritor oitocentista inglês Samuel Johnson possa nos ajudar a refletir sobre o futuro que queremos para nossas cidades.