*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje – Vol.48 – nº287.
“A regra era irem buscar os lavradores novas terras em lugares de mato dentro, e assim raramente decorriam duas gerações sem que uma mesma fazenda mudasse de sítio, ou de dono.”
Em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque descreveu o processo de sucessivas conquistas e sucessivos abandonos de território de exploração agrícola vigente nos tempos coloniais. Vencida a mata, implantada a fazenda, o passo seguinte seria novo desmatamento para nova plantação. Não se tratava a terra, não se adubava o plantio. Dizia-se que, “no Brasil, a terra só tem sustância na superfície.
”Esse processo de conquista, exploração e abandono por certo não é exclusivo dos tempos coloniais. Ele se reproduz em inúmeras situações modernas, em especial no caso das cidades brasileiras.
Nosso avassalador aumento demográfico, nas últimas décadas, foi crescentemente urbano, resultando em uma população citadina que adentrou o século 21 superando em mais de 40 vezes a que iniciou o século anterior. Assim, a busca por mais terra urbana fazia todo o sentido: mais gente, mais moradia, mais equipamentos, mais território.
Em simultâneo, nossos melhores pensadores urbanistas estiveram solidários à doutrina do ‘movimento moderno’, para a qual a cidade existente precisaria ser superada por uma nova cidade. O abandono de bairros e centros urbanos, hoje comum nas cidades brasileiras, está situado nesse contexto – bem como não está dissociado daquele processo especulativo enraizado desde a colônia.
Tal coalizão de ideias e de necessidades funcionou em uníssono até bem recentemente – quando a revisão urbanística e os movimentos de preservação do patrimônio cultural tornaram-se significativos. O tombamento de edificações notáveis, primeiro, e a proteção de trechos urbanos, depois, passaram a representar uma contenção no afã destruidor da cidade.
A revisão do pensamento urbanístico não é apenas preservacionista: defende a vitalidade urbana em acordo com o reconhecimento das preexistências ambientais e culturais. A nova cidade é um ponto vital intermédio entre a cidade herdada e a cidade futura. Nessa nova compreensão, os espaços urbanos da identidade coletiva, construídos historicamente, alcançam o desafio de precisarem ser preservados e simultaneamente corresponderem às expectativas de cada novo tempo. Cada geração impregna nos espaços os seus valores para que possa neles se reconhecer.
Penso que foi um bom caminho percorrido nas últimas décadas.
Contudo, se nesse aspecto o urbanismo trabalha em novas bases, a outra vertente com raízes históricas, a que busca novos territórios de expansão, esta continua impávida. Nossas cidades continuam expandindo-se em franco processo especulativo, construindo para além do território ocupado, criando vazios, e cada vez em mais baixas densidades populacionais. Mas o que foi ‘quase natural’, hoje, para além de predador do ambiente, é social, econômica e politicamente indesejável.
As expansões em novas terras brutas, que se consolidavam urbanisticamente pouco a pouco, não têm mais embasamento quando o crescimento demográfico é pequeno, quase nulo – e, em muitas cidades, até negativo. Elas deixam de ser lugar de acolhida e passam a significar ampliação das desigualdades. O lugar da interação social se esvanece. Economicamente, é contraproducente. A cidade menos extensa demanda menos infraestrutura. Os serviços públicos que precisam ser prestados a todos os cidadãos, como condição democrática, viabilizam-se na cidade mais densa.
A nova cidade já não decorre de novas terras em mato dentro, mas da cidade onde chegamos – a qual exige ser permanentemente mantida e qualificada. Desenhá-la, para os próximos tempos, não será mais possível em folhas brancas de papel. Será muito mais difícil e mais complexo: agora é preciso tratar a terra e adubar o plantio. Esse é o desafio lançado para o conhecimento urbanístico.
O estimulante é que, agora, o urbanista já não desenha sozinho.