O GLOBO 31 08 19
Em pleno Brasil Colônia, entre 1783 e 1792, Alexandre Rodrigues Ferrreira dirigiu uma expedição de reconhecimento da Amazônia profunda. Baiano, formado em Coimbra, viajou pelas “capitanias do Grão Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá”, a mando da rainha D. Maria I, chegando às fronteiras do país. Pelos rios, percorreu mais de 39.000 km. Pesquisou a flora, a fauna, os índios e os colonos. Registrou tudo em pranchas desenhadas com grande qualidade, hoje no acervo da Biblioteca Nacional.
É impressionante constatar a ocupação urbana ribeirinha. Alexandre Ferreira desenhou dezenas de cidades e vilas que visitou, “fotografadas” em seus planos urbanos e suas arquiteturas. É um levantamento amplo que evidencia o papel que as cidades desempenharam na consolidação da soberania lusa e, depois, brasileira, naquela região.
“Foi um ecólogo – e dos mais eminentes. Soube apreciar admiravelmente as relações entre o homem e o meio, entre o índio, o colono e o seu habitat.”, diz Almir de Andrade, no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia.
Hoje, quando a degradação da floresta entra, mais uma vez, na preocupação do mundo, é desejável homenagear esse pioneiro cientista. E, em simultâneo, entender que para enfrentar o desafio do desenvolvimento da Amazônia é preciso considerar o seu sistema urbano, sobretudo articulado pela rede fluvial. Ele será parceiro fundamental à defesa do ambiente.
Porém, se impõe a revisão do modelo urbanístico hegemônico, bem como o seu modo de articulação territorial. Observando suas arquiteturas, é lamentável constatar que pouco aproveitamos da inestimável contribuição da obra ecológica do grande arquiteto Severiano Mário Porto, que trabalhou em Manaus entre 1965 e 2010. Severiano produziu obras primas de integração cultura-natureza, premiadas mundialmente, hoje em parte degradadas.
É uma falácia admitir que o desenvolvimento econômico exige a liberalização do controle ambiental tanto quanto que a preservação da natureza não dialoga com a cultura.
Distante quase dois séculos de Alexandre Ferreira, a obra de outro grande ambientalista brasileiro, Roberto Burle Marx, é evidência maior do valor desse diálogo.
Artista multi talentoso, paisagista e pintor, Burle Marx embrenhou-se pelos ambientes do interior brasileiro em busca de exemplares da flora que vieram a compor seus projetos, pioneiros no paisagismo moderno mundial. Da floresta tropical à caatinga e ao cerrado, passou a empregar espécies inéditas ao conhecimento urbano.
Burle Marx tem um amplo repertório em todo o mundo. Mas é no Rio de Janeiro que se encontra grande parte de suas obras primas.
Por feliz coincidência, agora em que a questão ambiental assume novo relevo no debate público, uma iniciativa promissora foi anunciada em recente evento relacionado ao Congresso Mundial de Arquitetos que se realizará no Rio, em 2020, em concomitância com a designação da cidade como primeira Capital Mundial da Arquitetura Unesco-UIA.
O presidente da Firjan, Eduardo Eugênio Gouvea Vieira, propôs o desafio de resgatar a obra carioca do grande paisagista, em especial, o “Roteiro Burle Marx”, que inclui os jardins do Palácio Capanema, talvez o primeiro jardim moderno do mundo, a praça do Aeroporto Santos Dumont, o magnífico Parque do Flamengo, chegando às calçadas em mosaico de pedra portuguesa da Avenida Atlântica, em Copacabana. “Podemos fazer uma grande homenagem a Roberto Burle Marx. Muitas de suas obras estão deterioradas. Temos que resgatá-las. Temos toda a capacidade, juntos, independentemente de orçamentos públicos, de legar à cidade o seu resgate.”
Quando se prepara, pelo Iphan, a candidatura do sítio de Burle Marx, em Guaratiba, como Patrimônio da Humanidade, pela Unesco, a iniciativa de resgate pode vir a ser um signo para a celebração do diálogo essencial cultura-natureza. Ou seja, para o próprio desenvolvimento sustentável.