O GLOBO 24/11/20
São muitos os erros do Ministério das Cidades, criado em 2003 sob aplausos e esperança. Vale a pena preservá-lo?
Ainda que o sistema urbano brasileiro seja vital para o país, pouco participa das preocupações da política, da economia e mesmo da sociedade. Nas eleições, ele passa despercebido. Nos estudos acadêmicos, é quase invisível.
Merval Pereira, em recente coluna no GLOBO, divulgou documento de propostas de políticas públicas para o novo governo elaborado por um qualificadíssimo grupo de mais de cem economistas. Propõem 13 diretrizes gerais que alcançam micro e macroeconomia, social, segurança e ambiente. É um estudo abrangente, de importantes estudiosos, mesmo assim, a cidade não tem protagonismo nas propostas de desenvolvimento; é uma mera figurante na 13ª diretriz, a do meio ambiente, sequer é coadjuvante.
Contudo, o quadro urbano é insofismável. Tem gigantescas carências, um déficit urbanístico brutal, muita violência. Mas a cidade é o lugar da interação social; da inovação e do conhecimento, da cultura, da educação e da saúde. O século XXI é de serviços e, queira-se ou não, o serviço é urbano.
Em poucos anos, a população brasileira já não crescerá, e a ocupação do território se manterá sem mudanças massivas. Isto é, o conjunto de cidades está definido. Mas as cidades não estão prontas, ao contrário.
O Brasil está frente à necessidade de implantar novos conceitos para as suas cidades. Novos conceitos e uma agenda consequente. Como serão financiados os 40 milhões de novas moradias que esta geração construirá? Onde se localizarão? A família será protagonista? Como as áreas já ocupadas serão providas de infraestrutura? E a mobilidade em face das novas tecnologias e novos paradigmas? A cidade vai continuar se expandindo? Como garantir o domínio da Constituição na cidade toda, ao invés do domínio da bandidagem? Qual atenção ao meio ambiente? E aos espaços públicos para o convívio?
A boa cidade, com serviços públicos eficientes, com segurança, com boa mobilidade, é essencial para todos, mas em especial para aqueles que não podem suprir por conta própria a falta dos serviços e equipamentos que somente o coletivo pode prover.
Como bem disse Paulo Mendes da Rocha, o mais importante arquiteto em atividade no país, ganhador do Prêmio Pritzker, equivalente ao Nobel, “a cidade é feita mais de gente do que de construções”.
A cidade, assim, é o lugar para gentes felizes, que tenham as condições para crescer e se desenvolver plenamente. Para isso, precisam que o seu espaço de vida seja compatível com as exigências do século.
O Ministério das Cidades acertou algumas vezes e errou muito nestes anos. Partidarizou-se, foi loteado, promoveu maus programas, como o Minha Casa Minha Vida, deixou de tratar da urbanização dos bairros pobres e das favelas, não defendeu bons projetos nem a lisura nas licitações de obras públicas, lavou as mãos passando a culpa às prefeituras quando suas “políticas” fracassavam.
Mas as cidades estão aí para ficarem. Desconectadas do tempo, precisam de ajuda. Elas pedem o olhar da sociedade e a assistência de organismos estruturados como função de Estado, não de governo, nas três instâncias de poder. A União não pode se impor desde Brasília, desconhecendo as realidades locais, que são múltiplas; mas tampouco pode se omitir e deixar a responsabilidade do desenvolvimento urbano só para os municípios ou para o mercado ou para as famílias. É essa uma tarefa complexa, e é de todos.
Será tarefa épica trazer a cidade brasileira para o nosso século. Instituições voltadas para o urbano, bem concebidas, bem geridas, são uma base necessária, pois o desenvolvimento desejado não se fará com ótimas estatísticas, por melhores que possam ser, se deixarem para trás o lugar das pessoas.
No caminho do país está a qualificação da cidade, o espaço de vida dos brasileiros.