O GLOBO 13 abr 19
Chuvas intensas, nevascas, ressacas são fenômenos da natureza que causam danos e nem sempre é possível que as cidades se protejam para situações extremas. Mesmo em países ricos, ocorrem danos consideráveis.
Estamos habituados a grandes enchentes em São Paulo, capital mais rica do país. Belo Horizonte, também, tem recorrências importantes. Assim como o Rio, periodicamente vítima de catástrofes naturais.
A cidade é totalmente cultural, não é produto da natureza. Logo, é preciso reconhecer que se trata de um “intervento”: sem modificar o elemento natural não tem cidade. Assim, faz parte da história urbana o embate com as forças da natureza. Nem sempre as forças culturais são vitoriosas. Por isso, criaram-se procedimentos para evitar derrotas, como o cuidado com a ocupação de áreas íngremes, ou muito baixas, ou de solo frágil. Evoluindo, preservam-se mananciais, evita-se o desmatamento, entre outras providências preventivas.
O Rio tem dois bons exemplos. Reflorestou o maciço da Tijuca para garantir as águas à cidade; e, depois da tragédia de 1966-67, com centenas de mortes, criou a GeoRio e o investimento contínuo tornou a cidade mais segura. A penúria do órgão tem cobrado seu preço em vidas.
Contudo, ante o inevitável, há procedimentos mitigatórios. Os bombeiros agem na prevenção, mas, dada a ocorrência, precisam estar preparados e serem ágeis.
Não é preciso esperar a tragédia acontecer para que se reconheça que nossas cidades estão muito doentes. Não se previnem, tampouco reconhecem seus problemas – tratam-nos como se naturais fossem.
Violência, falta de saneamento, trânsito impraticável, irregularidade, abandono, não são da natureza, nem castigo divino, são criações humanas.
O Brasil precisa voltar seu esforço para o seu sistema de cidades, espetacular patrimônio construído pela população brasileira do jeito possível. Está na qualificação desse sistema urbano a possibilidade do país se desenvolver sustentavelmente. Sem boa cidade não haverá desenvolvimento, haja petróleo fácil ou não haja, haja reforma da Previdência ou não haja.
Se a Constituição delegou ao município responsabilidades importantes, nem por isso a União e os Estados podem se omitir de enfrentar o desafio da recuperação das cidades. O poder de controle urbano, por exemplo, o município não pode exercer porque leis federais o impedem. A irregularidade fundiária é insuperável com o emaranhado de regras perfunctórias e entraves cartoriais-burocráticos. As cidades metropolitanas estão à deriva, sem políticas integradoras, apenas ações setoriais; uma responsabilidade que é do Estado e é pouco exercitada.
Mas, de todas as medidas, talvez a mais relevante seja reconhecer que a cidade é configurada, na base, pela moradia. É o domicílio familiar que modela a cidade. Em uma economia capitalista, sem financiamento simples, acessível e universalizado, onde a família seja a protagonista da decisão de onde e como morar, não há de se querer uma cidade bem composta, regulada.
Mas talvez a mais relevante medida seja reconhecer que a cidade é configurada pela moradia. É o domicílio que modela a cidade. Sem financiamento simples e universalizado, onde a família decida onde e como morar, não há de se querer uma cidade bem composta, regulada. As alternativas são o favelamento, a segregação em conjuntos distantes ou Muzemas às centenas. Com milícia, a cidadania à deriva.
O Brasil esqueceu que o seu território é um bem comum que precisa ser bem tratado. O país não tem planejamento em nenhuma escala. Quando muito, faz projetos isolados e é incapaz de trata-los articuladamente. Os governantes dispensam as precedências, não dão continuidade a programas ou a políticas, e também dispensam o futuro; só pensam o momento de seu poder discricionário. Sobra voluntarismo.
Nossas tragédias naturais são recorrentes e nos deixam a todos indignados pela força de seu convencimento. No entanto, a tragédia do quotidiano urbano, mais silenciosa, nem porisso é menos contundente. Falta vontade de ver.
Nosso país precisa urgentemente pensar-se como país urbano, que somos, como poucos no mundo.