O GLOBO set 15
Em sua Autobiografia: o mundo de ontem, recentemente reeditada pela Zahar, Stefan Zweig, o escritor austríaco que viveu seus últimos meses no Brasil, onde morreu em 1942, nos relata a enorme transformação vivida por sua geração a partir da Primeira Guerra Mundial. Ele nos fala também das grandes capitais europeias e da efervescência cultural em sua Viena de então.
Não é saudosista. Reconhece o ‘colapso de um tempo’, quando a segurança nas instituições dá lugar à inimaginável destruição dos valores, das coisas e da própria Humanidade. O que fez de Zweig, europeu, austríaco, judeu, intelectual e pacifista, primeiro um emigrado, depois um apátrida. “Não é um exilado, mas um utopista-peregrino enxotado pela mesma pergunta: para onde?”, diz Alberto Dines, seu biógrafo.
Cem anos separam a Primeira Guerra de outra tragédia, a de milhões de emigrados da barbárie, no Oriente Médio e na África, sintetizada na morte do menino Aylan Kurdi, cujo corpinho inerte, emborcado na areia da praia turca, formou uma imagem que comoveu o mundo.
Mais ou menos esse tempo histórico tem a Praça Mauá, no Rio de Janeiro, que há pouco foi reinaugurada, depois de libertada do viaduto que a subjugava por décadas. Localizada ao norte da antiga Avenida Central, faz simetria com a Cinelândia, ao sul. O conjunto simboliza a grande transformação da então capital federal empreendida pela República.
Nesses cem anos, a praça Mauá foi o lugar de chegada de milhares de imigrantes, muitos também expulsos da Europa de Zweig, outros da terra de Aylan. Ultimamente, a praça é porto de turistas.
A poucos metros da praça, porém, outro atracadouro foi o depósito de milhares – talvez milhões – de africanos, saídos de sua terra não em busca da vida, mas forçados à morte ou à escravidão. Por centenas de anos depositaram-se pessoas nos portos brasileiros, entre os quais esse do Valongo, sepultado pelas obras da República que há um século transformaram o Rio. Agora redescoberto, o antigo cais está à mostra, é o registro do que não se pode mais negar.
A amada Viena do jovem Stefan, passadas as guerras, ainda é uma bela e grande cidade, embora sem o viço de capital do Império Austro-Húngaro. Assim também ocorreu com as grandes cidades europeias que sofreram a hecatombe nazista. Infelizmente, não é o mesmo que se pode esperar para as cidades arrasadas da terra de Aylan. Ainda menos para os sítios milenares destruídos pela barbárie do exército islâmico.
É triste, é trágico, verificar a deliberada intolerância, de todos os tipos, ontem e hoje. O que se passa para nós senão fortalecer a consciência nos valores permanentes da Humanidade, na solidariedade, no afeto, no reconhecimento que somos uma só gente?
E esse é o grande papel da cidade. É para o encontro na diferença que a cidade existe. Foi a mistura, não foi o isolamento, o que encantou o escritor austríaco e o levou a escrever Brasil, país do futuro – cunhando essa expressão de tanta repercussão.
Praça Mauá, Rio, onde Zweig desembarcou, em agosto de 1941; onde tantos patrícios de Aylan chegaram, livres, na grande emigração das primeiras décadas do século passado – e onde, quem sabe?, talvez o menino pudesse também ter aportado, se não tivesse sido colhido pelo destino! É preciso insistir.
Que mágica é essa, onde tudo vai e a cidade fica, ainda que outra?
Tal como nós próprios, como Fernanda Montenegro diz em entrevista para Domingos de Oliveira: “ [aos 85 anos] eu tenho uma menina dentro de mim e uma velhinha a vida inteira dentro de mim”.