*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje 299 – Dezembro/2012
Nos anos 1970, exacerbando-se a especulação imobiliária, houve grande reação de moradores de Ipanema, Rio de Janeiro, contra a construção de altos edifícios descaracterizadores do espaço urbano e da paisagem -apelidados por “espigões”. Esse movimento teve em Millôr Fernandes seu melhor porta-voz.
É complexa a conformação volumétrica e espacial de uma cidade. Depende de muitos fatores –especialmente, depende da ideia que se tem sobre a própria vida urbana. Nas cidades em que há multiplicidade de ambientes urbanos, a legislação urbanística precisa ser adequada a cada lugar, à paisagem, à história, às precedências. É um trabalho delicado, envolve escolhas e expectativas.
Assim, o volume a construir e a altura das edificações são questões a ponderar –mas não é tudo. É preciso considerar a relação dos edifícios entre si e deles com o entorno, os usos adequados e como a ocupação da área beneficia o todo. Trata-se da composição dos espaços públicos e da imagem ambiental da cidade.
O que há de comum entre tantas cidades que amamos? Não serão os edifícios, pois são muito diversos em volume, em altura, em tempo, em uso, em tecnologia construtiva. Nada mais diferente de um arranha-céu de Nova York do que um edifício parisiense ou ipanemense. Em todas elas, a qualidade está relacionada a seus espaços públicos.
Os edifícios conformam esses espaços, não se sobrepõem a eles. Caminhar com interesse e com prazer é uma das características desses ambientes. “Flanar”, como gostava o poeta francês Baudelaire.
A partir do século 19, desde que as tecnologias construtivas deixaram de ser vernaculares, tornando-se especializadas, e cresceram as exigências de infraestrutura urbana, o desenho dos espaços da cidade passou a ser responsabilidade da instância pública, função do Estado.
O que legitima esse monopólio é a busca da boa cidade. É tarefa governamental e não pode ser discricionária. Precisa ser estudada por corpo técnico-profissional permanente, produzindo efeitos após debate amplo com todos os agentes promotores da cidade –sobretudo os cidadãos. Portanto, não é uma tarefa emergencial; tampouco episódica.
A clara regulação das edificações é um atributo favorável tanto aos negócios quanto ao controle social do que se constrói. Para isso, as regras precisam ser fáceis de entender e duradouras.
Hoje, porém, tem prosperado o entendimento de que as prefeituras podem negociar os parâmetros a edificar, fora dos limites da lei, desde que haja benefícios para o erário. Assim, são permitidos maiores volumes a edificar, maior número de andares ou usos antes inadequados, desde que haja contrapartida de parte do empreendedor imobiliário. Justifica-se com o emprego dos recursos em ações de interesse coletivo.
Entre conceitos correlatos, está o das Operações Urbanas, através das quais o poder público confere à iniciativa privada a capacidade de produzir as edificações e os espaços segundo as melhores condições econômico-financeiras que o negócio imobiliário considerar –desde que a cidade seja atendida com intervenções que a beneficiem.
Seja em um caso, seja no outro, trata-se de uma flexibilização que não favorece à participação cidadã na escolha dos rumos de sua cidade. Ao contrário, leva ao alheamento, porquanto a concepção urbanística que vier a ser definida em debate comunitário poderá ser trocada, mais adiante, por dinheiro.
Mesmo estando ao abrigo de leis locais ou federais, nem por isso será legítimo esse modelo. Afinal, a cidade e seu espaço não são dos governos. Tampouco do Estado.
A forma urbana é construída no tempo; não é imutável, mas não há de ser volúvel.
A briga de Millôr e de seus companheiros do movimento contra os espigões em Ipanema é a legítima participação do cidadão em busca de espaços urbanos que tratem de beleza e encantamento –em amor por sua cidade. Não é algo que possa ser posto à venda.