*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje, edição 283.
O ideário civilizatório contemporâneo tem na cidade o seu espaço de conformação. Mas, em um mundo majoritariamente urbano, estará a própria cidade sendo promovida em acordo com a igualdade, a tolerância e a equidade?
Desde o alvorecer do urbanismo, no século19, as teorias arquitetônicas têm proposto uma cidade que corresponda tanto às mudanças decorrentes da industrialização como aos conceitos democráticos da modernidade. Com a certeza de que o futuro seria róseo, o esforço modernista foi pela concepção de um modelo urbanístico capaz de corresponder ao paraíso. Somente novas cidades funcionais, por sobre as antigas se necessário, seriam o passaporte para a felicidade. Obviamente, a resposta idealizada demonstrou-se insubsistente.
A velha cidade cumpriu um relevantíssimo papel. Proporcionando melhora nas condições sanitárias, educacionais e laborais, reduziu-se a mortalidade infantil e expandiu-se a expectativa de vida, promovendo o exponencial aumento demográfico que caracterizou o mundo urbano no último século. As cidades são co promotoras desse desenvolvimento, embora atingidas em sua qualidade média.
No Brasil, em 50 anos, multiplicou-se nove vezes a população urbana: de 18 milhões de citadinos a 165 milhões, em 2010.
Os modelos paradisíacos funcionalistas, como o de Brasília, não adquiriram hegemonia nas velhas cidades europeias. Mas as cidades dos países que alargavam fronteiras, como os da América, sim, submeteram-se, em busca do eldorado urbano. No caso, a miragem se deslocava sobre automóveis para os subúrbios cada vez mais distantes– e menos densos.
Aqui, as grandes cidades brasileiras aboliram o transporte coletivo sobre trilhos e adotaram o modelo rodoviário, por ônibus, em articulação com o aumento da frota de automóveis. O argumento é: ônibus e carros implantam-se mais facilmente do que trens e bondes, basta haver ruas. Assim, novos loteamentos puderam ocorrer em áreas afastadas das antigas linhas estruturantes da cidade, permitindo a ocupação para além da mancha urbana. Quase sempre deixando de permeio vastos vazios, à espera de valorização.
Sobre trilhos, a cidade se estrutura de um modo; sobre pneus, de outro. No primeiro, a densidade populacional é desejável; no segundo, é aparentemente irrelevante. De fato, a ocupação em baixa densidade é contrária ao transporte coletivo. Não lhe dá condições de frequência e de preço. Também é contrária às infraestruturas urbanas, com altos custos para implantação e manutenção.
Diferentemente das cidades norte-americanas, onde o subúrbio é rico, nas nossas cidades a expansão é pobre e sem infraestrutura. Nas metrópoles, as áreas de miséria estão geralmente nas periferias.
Nesse caminho brasileiro, o Rio é cidade exemplar: expandiu-se e reduziu sua densidade populacional em 40%, desde 1960, alcançando hoje índices do século 19 – quando a vida urbana exigia pouca infraestrutura.
Expansão desse gênero tem profundas consequências sobre o futuro da sociedade. Teremos menores condições de democratizar a cidade, de equalizar oportunidades de educação, emprego, saúde e segurança. A ocupação expandida em baixa densidade, pobre ou rica, debilita o sistema urbano e adia indefinidamente a chegada da equidade e do desenvolvimento.
Penso que se esboça um sentimento coletivo de revisão desse modo predador. Arquitetos, urbanistas e pesquisadores urbanos têm defendido uma reversão de modelo, em benefício de cidades mais compactas, mais sustentáveis, que preservem a qualidade maior da vida urbana, a interação social.
Agora, sem rejeitarmos a cidade existente ,estamos em busca de garanti-la como espaço democrático, sintonizado com o ideal de tolerância e equidade.