*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje – Nº 286.
No embate do cotidiano costumamos ser impacientes com as condições da vida urbana. Muitas vezes, somos céticos quanto às possibilidades de solução para os problemas da cidade. Pudera: vivemos entre engarrafamentos, poluição, violência, áreas públicas degradadas… Enfim, um panorama incômodo e até ameaçador.
No entanto, estamos diante de um fenômeno recente. A cidade que nos perturba adquiriu seus atuais contornos já no século 20 – no caso brasileiro, a partir dos anos 1950. Por sua complexidade e abrangência, pode ser entendida como um fenômeno distinto.
As diferenças entre a cidade de hoje e a cidade herdada não chegam a ser percebidas em toda sua potência porque as matrizes espaciais são comuns. O tecido urbano, constituído por parcelamentos, edifícios e ruas, preserva-se como a estrutura essencial de ambas, apesar da grande influência dos pensadores modernos, que propunham modelos urbanísticos descolados da herança recebida.
É bom o exemplo de Nova York, cujo traçado de Manhattan, de 1811, ainda é basicamente o mesmo. E, no entanto, é lá que se expressa hegemonicamente um dos elementos mais significativos da cidade moderna, o arranha-céu.
Em poucas décadas, a cidade herdada precisou se adaptar às poderosas inovações tecnológicas do nosso tempo. Ao inicio da República, as cidades brasileiras não dispunham de redes sanitárias, águas pluviais disseminadas ou eletricidade – esta chegou já com o novo século. O sistema viário precisou se ajustar à mudança no transporte, que, antes movido a tração animal, incorporou bondes, trens, automóveis e metrô. As edificações alcançaram a altura permitida pelos elevadores – e que as tecnologias construtivas do concreto e do aço trataram de acompanhar.
Também é no século 20 que a moradia urbana experimenta enorme transformação conceitual: já não se admite o compartilhamento do domicílio entre famílias. Cada casal que se forma precisa de um lar: “Quem casa, quer casa.” Multiplicam-se as novas construções, do modo que for possível.
A cidade acolhe populações cada vez maiores. No caso brasileiro, que iniciou o século passado com escassos 4 milhões de citadinos, chega ao final dele com 160 milhões de brasileiros urbanos. É uma evidência da formidável capacidade de adaptação das cidades.
Por mais compreensivos que possamos ser, se vivemos entre engarrafamentos, poluição, áreas públicas degradadas, decorrentes da adaptação que as cidades precisaram fazer, não precisamos nos submeter a tal realidade. É justo que sejamos críticos, até cáusticos, frente aos problemas urbanos que enfrentamos. E que queiramos uma outra cidade.
Mas é desejável que o primeiro passo seja reconhecer o gigantesco esforço que a cidade fez. A partir daquelas poucas e relativamente pequenas cidades de cem anos atrás, o Brasil desenvolveu um sistema urbano complexo e diverso para 85% de sua população. Temos duas megalópoles mundiais, São Paulo e Rio, com populações maiores que países como Holanda ou Portugal. Mas como as fizemos? Sem políticas públicas consistentes: nem de habitação, nem de transporte, nem sanitária ou fundiária. Fez-se a cidade brasileira com enormes virtudes, é verdade, mas com gigantescas deseconomias e injustiças.
Como segundo passo, nos cabe ajudar a construir um bom debate sobre a cidade que queremos. Não convém que a cidade do século 21 seja conduzida do mesmo modo que sua antecessora. Nossa ação política terá que buscar incluir o tema urbano na agenda pública brasileira. A cidade será mais inclusiva? Oferecerá os serviços públicos a todos? Será mais bonita?
Mas, diferentemente do que queriam os modernos, para quem tudo devia ser novo, temos que partir de onde chegamos. É da cidade que temos que será desenhada nas próximas décadas a cidade que queremos. Oxalá ela possa ser tão receptiva quanto sua antecessora, mas mais amistosa e democrática. Já não basta ser o fenômeno do século.