Dois Brasis se encontram em disputa: o que quer lei para todos e o que quer lei par asi. O mecanismo comum é a idealização no papel e o detalhismo para as exceções. Acidade exemplifica essa situação.
O país formulou tantos requisitos para a moradia urbana legal que a tornou inviável para a maioria da população. E, não oferecendo as condições efetivas para que as famílias tivessem acesso à moradia legal, o Brasil conduziu o povo a construir na irregularidade das favelas e dos loteamentos.
Ante a sua incapacidade, as prefeituras deixaram de lado sua responsabilidade histórica original, a regulação do uso do solo. Omitiram-se das áreas populares e serviram de bandeja o território para a ocupação por valentões, depois por traficantes, agora por milícias. Nesses territórios não vige a Constituição. Vige a violência, interna e externa, que o vice-presidente da República avalia como uma situação de guerra de guerrilhas.
Alheias às áreas populares, as prefeituras restringem-se a atuar nas áreas mais ricas, onde o valor da propriedade pode se depreciar ante a irregularidade. Como as regras são detalhistas e perfunctórias, é o governo que emite leis e mais leis que abstraem as regras para aqueles que podem pagar pelo que se denominou de “mais-valia”. Ou seja, pagar para construir descumprindo a lei.
Hoje, vigora o instituto que permite projetar fora das regras desde que o pagamento seja destinado, supostamente, a atividades de redução das carências urbanísticas. É o instituto da Operação Consorciada.
Também nas obras públicas legislou-se para o descumprimento. Por acordo entre empreiteiras e agentes públicos, as licitações de obras públicas não precisam ser precedidas pela elaboração de projetos completos. Leis sucessivas ampliaram os trâmites burocráticos perfunctórios mas desconsideram o essencial. Ou seja, é a construtora quem se encarrega de projetar a obra para a qual foi contratada…
Deu no que deu.
Em seu depoimento na Lava-Jato, o presidente da maior empreiteira do país relatou que destinava recursos vultosos para atuar no que chamou de “sistema de concorrência de obras”. Em publicação de página inteira nos principais jornais, a segunda maior empreiteira pediu desculpas ao povo brasileiro pelas falcatruas que promoveu. Comprometeu-se a jamais participar de licitação de obra pública em que o projeto completo não estivesse previamente definido.
Mas leis posteriores reiteraram essa excrecência brasileira, a tal da “Contratação Integrada”: contrata-se projeto e obra, juntos. Única no mundo civilizado.
Isto é, enquanto a legislação de licitação se tornava mais complexa, mais exigente em aspectos burocráticos, menos exigente se fazia naquilo que é determinante para o preço e a qualidade das obras.
A violência urbana, que massacra, que mata, que compromete o futuro de gerações, está à margem desse quadro? Ela, por acaso, não é fruto da desconsideração para com as áreas populares e à própria cidade? Não decorre da omissão do Estado em sua função essencial enquanto ele se aparelha em instituições cada vez mais senhoras de si, que desprezam as responsabilidades para com a cidadania?
Nessa situação tão difícil em que nos encontramos, onde o desemprego, a desigualdade e o desalento são companheiros de grande parte dos brasileiros, é constrangedor ver-se o guardião da Constituição, o Supremo Tribunal Federal, tratar de firulas, firulas, para justificar o injustificável.
A derrocada da Lava-Jato, como se anuncia com grande probabilidade, é autorização para consolidar o país de privilégios inaceitáveis — e o uso dos dinheiros públicos para o deleite de estamentos autocráticos e de seus parceiros históricos.
A violência domina. Violência dos fuzis e do desprezo. Continuará dominando o território, a cidadania, a ética?
O Globo 28 Set 2019