*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje 302 – Abril/2013
Por que temos prazer em passear por cidades bem conformadas urbanisticamente e continuamos a construir cidades espacialmente desestruturadas?
Nestes pouco mais de dois séculos de industrialização, o mundo urbano transformou-se de modo exponencial, em população, em tamanho das cidades, em multiplicidade de funções, em imagem ambiental.
Os principais pensadores do urbanismo moderno dedicaram-se naqueles primeiros tempos a enfrentar o enorme desafio da explosão demográfica e do crescimento das cidades. Concluiram que as cidades herdadas não seriam capazes de responder pelos novos tempos; e que um novo modelo urbano haveria de ser concebido.
Os modernistas de princípios do século XX eram funcionalistas, viviam tempos fordistas, e idealizaram cidades “racionalistas” onde as funções urbanas seriam muito bem definidas. Trechos inteiros das cidades passaram a ser apenas residenciais; os centros se transformaram em lugares apenas de negócio. Isoladas entre si, as funções seriam interligadas por uma circulação viária autônoma das edificações. A rua não seria mais a articuladora dos espaços, tal como propugnava Le Corbusier, o maior doutrinador modernista. Com o advento do automóvel, a cidade deixou-se dominar por ele.
Assim, seja por sobre a cidade existente, seja nas expansões que o crescimento demográfico impôs, tudo mudou. Grandes edifícios, grandes gramados, grandes vias. A cidade se segmentou. O modelo urbanístico modernista tornou-se vitorioso e hegemônico.
Inegavelmente, rompendo com a estrutura herdada, ele foi capaz de promover a expansão das cidades permitindo absorver as novas populações. Privilegiando o automóvel, deu condições para o “derramamento” da mancha urbana e, em certo sentido, à produção das periferias. Idealizando a igualdade, alcançou a multidão.
Não obstante suas vitórias, o urbanismo modernista recolhe grande crítica, sobretudo pelo enfraquecimento (ou anulação) do espaço público como lugar do encontro e da interação social. O prazer de fluir pela cidade nos é oferecido naqueles ambientes onde predomina o continuum construído, ao invés dos edifícios isolados; onde há diversidade de funções; e onde podemos caminhar com conforto por um espaço urbano bem definido, com boas proporções e escala compatível com o homem. São cidades pré-modernistas que potencializam esse prazer: flanar por Paris é inesquecível; é no traçado em quadrículas de 1811 que Nova York nos encanta; mesmo em nossas cidades de hoje, é nos seus trechos de urbanismo convencional que se encontram os melhores ambientes.
Não há nostalgia nesse prazer. Não precisamos que as cidades sejam antigas para esse desfrute. Tampouco precisa haver privilégios: o espaço público de alta qualidade não exige a riqueza econômica ou o contraponto de outros mal compostos e anódinos. É que a qualidade não se apresenta pela antiguidade ou pela raridade, mas pela conjunção de fatores objetivos, tais como o modo como os edifícios se articulam entre si, o uso em diversidade que lhes é conferido, a escala que vêem a compor, a configuração do espaço, a textura, entre outros elementos arquitetônico-urbanísticos, funcionais ou simbólicos.
O urbanismo contemporâneo reconhece esses atributos qualificadores e com eles faz o seu ideário de revisão do modernismo. No entanto, tais valores ainda não se encontram participantes das decisões políticas e empresariais majoritárias na produção das novas edificações e de novos trechos urbanos. E as cidades continuam sendo construídas para o isolamento. É que há, certamente, uma “inércia epistemológica” que afasta os conceitos da prática –às vezes por décadas.
Contudo, com a valorização dos modos alternativos de circular, com a ênfase na sustentabilidade ambiental, com a disseminação das informações, talvez estejamos hoje chegando ao fim dessa transição. Oxalá!