Como é bom ver o Flamengo jogar bem! O Mengão lembra a seleção Canarinho dos bons tempos. É um time que inspira a cidade e o país.
Jogue com alegria, com muito prazer – recomenda o Mister. O que pode ser mais Rio?
A bem aventurança é o signo inaugural do Brasil, já na Descoberta. A bem aventurança é o signo da Cidade Maravilhosa, que nós esquecemos pelo caminho. Conseguiremos retomá-lo?
O aumento da desigualdade de renda no país tomou boa parte do noticiário dos últimos dias. No estrato mais rico da população, a renda aumentou; no estrato mais pobre, a renda diminuiu. Os dados referem-se a 2018, mas a tendência já vem de longe, segundo estudo do economista francês Thomas Piketty, corroborado por pesquisas de institutos brasileiros. Não é novidade, portanto, o aumento da desigualdade entre nós.
A desigualdade também aumenta em muitos países, a sugerir uma questão estrutural decorrente do modelo econômico e das grandes transformações tecnológicas.
Embora sejam fenômenos semelhantes, aqui a questão é mais grave. É mais grave porque os estratos de baixíssima renda são muito amplos, porque o país não cresce há anos e porque a desigualdade é a maior do mundo entre os países estudados por Piketty.
Ademais, há outro fator agravante, de alto calibre: a crise das cidades.
Aqui, famílias mais pobres pagam mais caro por bens indispensáveis para seu quotidiano. Isso não é contabilizado nas estatísticas que medem a desigualdade de renda mas é contabilizado no bolso.
Quanto custa o gás de cozinha sob domínio bandido? Quanto custa 4 horas no trânsito? E morar sem saneamento? E sem segurança pública?
Com o abandono dos bairros populares, sob dominio bandido, produtos essenciais, como botijão de gás, tem sobrepreço de 25% ou mais.
No transporte metropolitano, os preços são mais altos. No Rio, o governo ampliou a desigualdade construindo a Linha 4 ao invés de transformar em metrô os trens suburbanos, que atenderiam população muito maior com custo de obra muito menor.
Como metade da população urbana brasileira não tem saneamento adequado, a incidência de doenças é maior, diminuindo a capacidade produtiva da população moradora, a mais pobre.
No caso da moradia, também. Sem crédito, as famílias compram materiais de construção em pequenas doses, mais caros. Sem crédito, e com leis municipais excludentes, as moradias são construídas na irregularidade, justificando que governos populistas se abstenham desses bairros. Fecha-se o círculo perverso com a dominação territorial bandida que aumenta os custos dos bens e dos serviços para os mais pobres.
A escassez do serviço público de segurança nas áreas populares reduz a potencialidade empreendedora da população bem como as oportunidades de crescimento pela educação. É um modo de eternizar a desigualdade de renda.
Assim, não está apenas no âmbito da economia a resposta à desigualdade. Ainda que ações fiscais sejam importantes, como na França, é pouco. A vergonhosa, antidemocrática e crescente desigualdade de renda precisa ser enfrentada de modo abrangente. E a cidade está no caminho.
Em 2020, o Rio e o Brasil serão o foco para o debate propositivo sobre o futuro urbano. É boa oportunidade para firmarmos compromissos recuperadores – em se querendo.
O Flamengo inspira ao jogar com alegria e prazer. Inspira porque esse é o signo do país e, sobretudo, do Rio.
Vale a pena tentarmos o mesmo. Vamos jogar em conjunto em benefício da recuperação da bem aventurança. É um jogo para todos, não só para rubro-negros.
E é um jogo em que todos ganham.
(Afinal, quem diria há poucos meses que o Mengão chegaria onde está?)
O GLOBO 26 10 19