O GLOBO 29/09/2018
Acostumamo-nos a momentos de grande angústia quanto aos caminhos do Brasil. Somos tentados por soluções redentoras, mas a volta do relógio mostra que não há mágica.
Também apostamos que a grandeza do país impede a queda no abismo. Contudo, já perdemos muita energia. Questões fundamentais permanecem sem equacionamento, para o qual precisamos de convergência democrática.
A habitação é uma dessas questões fundamentais. Nas políticas ditas habitacionais, as más respostas vieram indistintamente de todos os espectros políticos, desde os anos 1930 — quando se identificou o problema da moradia popular entre nós.
Tais políticas confundem moradia com habitação. A moradia é o domicílio de uma família. A habitação é a moradia, as redes de infraestrutura, o transporte, os equipamentos sociais e os serviços públicos. Simplificando: a moradia é individual, a habitação é social.
Uma família pode prover sua moradia, ainda que com precariedade (e muita dificuldade). Mas a habitação, não; só a ação do coletivo. Se quisermos uma boa cidade, precisamos produzir habitação. Se não nos importarmos com a cidade e a cidadania, poderemos produzir apenas moradias.
Todos os governos, desde meados do século passado, promoveram moradias. Não trataram de política de habitação. Sob esse rótulo, fizeram política econômica para cuidar da indústria de materiais, das empreiteiras e do sistema financeiro, dizendo gerar empregos. Assim foi com o BNH, extinto nos anos 1980, até chegarmos ao Minha Casa Minha Vida (MCMV), igual em propósito e em desastre.
Em quase um século, os recursos públicos e a poupança coletiva, somados, financiaram 20% dos domicílios construídos. Os demais 80%, quem financiou foi a própria família, na poupança tijolo a tijolo.
Assim, hoje, nossas cidades têm metade de suas moradias na precariedade, grande parte insalubre. Falta saneamento adequado para metade do Brasil urbano. Para se deslocar, metade da população sofre em transporte inaceitável. Nas grandes cidades, como o Rio, talvez metade de seu território esteja controlado por bandidos. Nosso esforço precisa ser para incluir essas metades do país nas exigências do século XXI.
A questão é complexa, não há solução única. Mas há experiências exitosas, aqui e ali, que sinalizam possibilidades — havendo interesse, continuidade e competência.
Vale elencar algumas delas.
1 — Para superar a precariedade e a insalubridade de 30 milhões de moradias existentes, gigantesco patrimônio das famílias pobres, uma resposta é a “assistência técnica”. Com pequeno crédito à família e assessoria profissional, reformam-se as moradias, como faz hoje, de modo exemplar, o Governo do Distrito Federal.
2 — Para enfrentar o déficit urbanístico de loteamentos populares e favelas consolidadas, há os bons exemplos do programa Favela-Bairro, no Rio, e Guarapiranga, em São Paulo. Depois, em Medellín, Colômbia. Eles mostram a potencialidade em criação de empregos, inserção social e redução da violência
urbana.
3 — O Brasil construirá, necessariamente, 40 milhões de domicílios nesta geração. Sem nova política, serão irregulares e precários. Uma resposta adequada é o crédito desburocratizado para a família, conforme suas condições. Ela decide: constrói em lugar legalizado ou compra no mercado imobiliário. No Rio, o PreviRio teve ótimo programa de financiamento para funcionários da prefeitura. A Caixa teve incipiente programa no final dos anos 1990.
4 — O financiamento para as empresas empreenderem é essencial. Porém, não pode ser “financiamento” com demanda garantida, como é regra no MCMV para as rendas baixas. Assim, não é empreender, mas negócio entre governo e empreiteira, sem a decisão do interessado final, com resultados funestos.
Quem será o novo presidente? E os novos congressistas? E os novos governadores?
Sejam eles quem forem, o desafio permanece. Não há mágica. Incluir a metade da cidade à cidade brasileira é o caminho democrático e do desenvolvimento.