Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 14/09/2013
“Que será Buenos Aires?”, pergunta em famoso poema o escritor argentino Jorge Luís Borges. Primeiro, descreve o que lhe é próximo: Buenos Aires “é o último espelho que reproduziu o rosto de meu pai”, “é a mão de Norah”, “é aquele arco da rua Bolívar”. Mas, a seguir, o poeta amplia o entendimento: “Buenos Aires é a outra rua, a que nunca pisei, o miolo secreto dos quarteirões, os últimos pátios, é o meu inimigo, se eu o tenho, (…) é o estranho, o bairro que não é teu nem meu, aquilo que ignoramos e aquilo que queremos.”
A cidade é minha íntima e é minha desconhecida, íntima de meu desconhecido e desconhecida dele, íntima talvez de meu inimigo, se eu o tiver.
Essa condição nos faz, a cada um, protagonista da vida urbana e fundamenta o direito à cidade – que, na democracia, é indissociável da cidadania. Ele engloba o viver em segurança e liberdade (sabemos o quanto custa a violência!); inclui a disponibilidade das infraestruturas essenciais à vida civilizada e deve assegurar condições satisfatórias de habitação e mobilidade.
Mas, se esses valores têm se afirmado na consciência coletiva, ainda são escassos. Há clara evidência da insuficiência dos governos em suprir a cidade desses deveres de Estado.
Em recente estudo, o Observatório das Metrópoles faz uma avaliação sobre as condições de “bem estar urbano” relativas às quinze maiores cidades metropolitanas brasileiras. Os pesquisadores Raquel Oliveira e João Nery informam que, dos 338 bairros que compõem a cidade metropolitana do Rio de Janeiro, 134 (40%) apresentam condição ruim ou muito ruim segundo os indicadores considerados. Na mobilidade, 240 bairros (71%) apresentam condição ruim ou muito ruim. Segundo dados da ANTT, entre as metrópoles, o Rio tem o mais alto percentual de moradores que gastam mais de duas horas nos trajetos casa-trabalho.
Se a cidade é “o último espelho que reproduziu o rosto de meu pai” e simultaneamente a “rua que nunca pisei”, como diz Borges, esses números não podem ser apenas estatísticas, renovados a cada pesquisa. Somos nós. Haver um bairro dominado por bandidos armados não é inevitável – sobretudo depois da experiência das UPPs. Milhões de cidadãos, todos os dias, perdendo três ou quatro horas no trânsito, ou morando sem infraestrutura adequada, não é um problema só deles – é de toda a sociedade.
Não se trata de reinventar a cidade, como pensavam os modernos ante o avanço demográfico. Mas é um impositivo democrático reorganizar as relações de decisão e poder na metrópole.
Nossas cidades precisam ser pensadas e planejadas para além dos governos e das idiossincrasias dos mandatários eventuais; em respeito à diversidade social, cultural e de interesses, tampouco podem ficar reféns de pressões hegemônicas, hoje ditadas pelos desejos imobiliários e rodoviaristas.
As cidades mudam sempre, ainda que estáveis [e feitas de concreto]. Paradoxalmente, está em seu espírito, composto pelos sonhos de todos e pela vivência de seus espaços, a continuidade de nossos vínculos essenciais. O “último espelho” e o futuro comum.