Pouco mais de um século separa duas grandes obras iniciais da modernidade. Em 1516, Thomas Morus, humanista e mártir católico inglês, escreveu “A Utopia”; René Descartes, filósofo francês pai do racionalismo, publicou “Discurso do Método” em 1644.
Utopia é uma ilha imaginária tomada por um conquistador “que teve bastante gênio para humanizar uma população grosseira e selvagem”. A ilha tem “cinquenta e quatro cidades espaçosas e magníficas, iguais; as linguagens, os hábitos, as instituições, as leis são perfeitamente idênticas.” Aí vige a certeza.
No Discurso, Descartes enuncia a célebre expressão “penso, logo existo” e defende o valor da dúvida: “O bom senso é a coisa mais bem repartida do mundo, pois todos pensam que o tem na medida certa. A diversidade de opiniões existe não porque uns são mais sensatos que outros mas porque conduzimos nossos pensamentos por diversas vias e não consideramos as mesmas coisas”.Os modernos do início do século 20 tentaram recuperar a ideia da cidade utópica como matriz de uma nova sociedade. Tudo teria seu próprio lugar: moradia, trabalho, lazer. Visto que, entre iguais, não há necessidade da interação, o espaço público seria pouco relevante.
Não somos todos iguais. Brasileiros, somos misturados. Somos misturados na cor da pele, nas origens, nos credos, na vida social. É nossa riqueza nacional, nossa maior contribuição à civilização. O mundo precisa dessa nossa experiência essencial que se opõe à onda de isolamento e de exclusão, exacerbada na era digital.
Nas redes, ao se falar o que se quer, sem olhar o outro, sem modular a voz, somente na fria escrita, dificulta-se a tolerância e se facilita o narcisismo. É-se levado a traçar o seu pedaço como o único válido, a ver a sua vida como a razão do mundo. O outro incomoda – o diferente, o pobre, o que ri, o que conversa, o que festeja. Quer-se o silêncio, a segregação, quer-se a anti-cidade.
Emergem autoritários, governantes ou não, que querem falar mais alto, não aceitam o contraditório; querem impor sua ideologia ou seu credo, “humanizar os selvagens” tal como o conquistador da Utopia.
O meio é a mensagem, dizia Marshall McLuhan. Nestes tempos digitais, sobretudo em grupos, não é o diálogo que prevalece, é a polarização.
Em contraponto, é preciso celebrar o encontro com o diferente e enriquecer a vida social e a política, visto que a sociedade é diversa, como mostra Descartes. É esse o lugar da cidade, que surge não por questões materiais, mas surge justamente pela necessidade espiritual do convívio. E o Rio de Janeiro, por sua história, por seu espaço constituinte, por sua mistura e por sua cultura, não hesitemos em afirmar, foi, é e pode ser um farol de humanidade.
A vida social precisa de espaços públicos apropriados para que possa evoluir. Isso é essencial não somente pela exigência fundamental de interação não dirigida; também, porque é das trocas que nascem as ideias, o conhecimento, a inovação, a cultura, – alicerces do desenvolvimento econômico neste século.
É o lugar do diálogo, é o papel da cidade.
O Rio e as cidades brasileiras foram capazes de acolher um crescimento demográfico proporcionalmente o maior no planeta. Mas o fizeram com enormes carências que precisamos superar. A inclusão de dezenas de milhões de brasileiros na vida urbana segundo as exigências contemporâneas é desafio para o desenvolvimento. A exclusão representa a abdicação do futuro.
Porém, a busca pela equidade no urbano ainda não foi capaz de ocupar o palco político. Que em 2020, com diálogo e sensatez, quando o Rio e o Brasil serão o foco do mundo para o debate sobre a cidade do século 21, possamos construir uma agenda propositiva, inclusiva e de solidariedade.
Feliz Natal.
O Globo 21-12-19