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O Globo

O polo e o trópico

By 18/01/2020setembro 23rd, 2021No Comments

Há um enorme contraste entre o que podemos fazer no polo sul e o que estamos fazendo aqui no trópico. Cristovam Buarque terá a resposta?
Nesta semana, foi inaugurada a Estação Antártica Comandante Ferraz, base brasileira para pesquisa científica em condição climática extrema, construção sofisticada e de alta tecnologia. Ela demonstra nossas possibilidades quando queremos fazer direito.

Sob gerência da Marinha, qualificados especialistas formularam o programa da nova base; o Instituto de Arquitetos do Brasil organizou concurso público de projeto, sendo vitoriosa equipe de jovens arquitetos, que elaborou o projeto completo; a partir dele, a obra foi licitada e contratada a construtora, por competência e preço. Por que as obras públicas não são feitas assim?

Não são, mas já foram. O Brasil tem riquíssimo acervo arquitetônico-urbanístico. Soubemos fazer obras magníficas, como o Palácio Capanema, um dos melhores edifícios modernos do mundo; a emblemática obra paisagística de Roberto Burle Marx; uma nova capital no deserto; e temos um patrimônio de vinte metrópoles e duas megacidades. Não é pouca coisa.
Ainda nesta semana, o respeitado político Cristovam Buarque, que foi governador, senador e ministro, analisando a ação de governos de Itamar a Temer, apontou falhas políticas e estruturais. “O Estado ficou mais ineficiente, aparelhado e endividado. Nós falhamos no propósito de dar uma nova direção para o futuro de nosso país e de nosso povo”.

Ele não está salvando a ditadura. Simplesmente, reconheceu que o seu campo político, quando no poder, frustrou seus melhores propósitos reiterando antigos defeitos estruturais. Entre eles, digo eu, o pouco caso dado às cidades.
Nesse período tratado por Cristovam, a população de nossas cidades cresceu 60% e o número de domicilios dobrou. Metade das moradias não tem esgoto adequado e a mobilidade urbana é desastrosa, evidenciando que nossas cidades não vão bem. Não obstante, abandonamos a ideia de Planejamento e de Projeto.

Sim, as incipientes instituições de Planejamento Urbano, Metropolitano e Regional foram sucateadas e afinal extintas nas três instâncias de governo. Poucas se salvaram.

Nesse período avaliado por Cristovam Buarque, a atividade de Projeto também esboroou-se. A ideia de projetar para depois construir, herança civilizatória da Renascença, aqui se perdeu. Lei de 1993 permitiu licitar obra pública sem projeto completo. Em 2008, criou-se o famigerado Regime Diferenciado de Contratação, permitindo-se licitar a obra a partir de estudos preliminares. Desde 2015, licita-se a obra sem projeto algum, sendo da empreiteira a tarefa de definir o que fazer, ao seu interesse comercial, é claro.

Deu no que deu, na Petrobras e nas milhares de obras públicas superfaturadas, mal construídas, paradas. Mas a lei de 2015 continua vigente.
Na próxima semana, inicia-se o Ano do Centenário do Instituto de Arquitetos do Brasil, a mais antiga das entidades de arquitetos, de livre associação e trabalho voluntário. Em sua ata de fundação constam dois princípios: a defesa da cultura arquitetônica (bem da sociedade) e do concurso público de projetos (qualificação do espaço brasileiro).

Aos cem anos, nosso IAB persevera. Organiza, com o apoio de todas as instituições da arquitetura, o Congresso Mundial de Arquitetos, que pela primeira vez será no Brasil, em julho, no Rio. Assim, a cidade foi designada pela Unesco como primeira Capital Mundial da Arquitetura.

Nossa velha-jovem entidade acredita no Brasil. Convida ao diálogo com a sociedade para definir novos rumos para o espaço construído. O debate sobre nossa realidade urbana e propostas daí resultantes hão de ajudar a melhorar a vida brasileira. O que se faz no polo pode ser feito no trópico.

“Todos os Mundos. Um Só Mundo. Arquitetura 21,” é o tema de 2020.

O GLOBO 18 01 2020