O GLOBO 27/10/2018
É ilusão achar que segurança é atribuição setorial, da polícia. É tarefa do Estado, com todos os seus instrumentos.
À véspera da eleição mais importante desde a redemocratização, pouco se sabe sobre as políticas a serem implementadas, com as campanhas centradas em palavras-chave, apenas retóricas. Mas a realidade está aí, com seus desafios concretos. Entre eles, o cotidiano massacrante da maioria dos brasileiros que moram em cidades, sobretudo nas metrópoles.
É desse cotidiano massacrante que emerge o sentimento de mudança, o pedido de atenção.
A Constituição foi feliz na concepção das instituições e dos direitos civis. Mas nem todos eles se efetivam na vida social. Mano Brown, em comício, pediu sintonia com o povo. Ele tem razão; como se sabe, não é só um partido, é a política e o Estado que estão descolados da população. A corrupção, com sua enorme carga moral, é o signo; porém, o descolamento real se vê no abandono em que se encontra metade dos brasileiros que moram em cidades.
As leis só regulam e protegem se o Estado se faz efetivo. Não basta escrever direitos, é preciso que a ação do Estado corresponda.
É claro que a União e o Rio de Janeiro, pela crise que atravessam, precisam de políticos competentes, que liderem, que sejam consequentes. Que respeitem a Constituição e as instituições que a sustentam. Que tratem a economia e as finanças públicas com responsabilidade, que tenham atenção para com o desemprego, a violência, a saúde e a educação. São temas essenciais.
Porém, entre estes há de estar a cidade, ainda que as campanhas tenham passado ao largo. Cidade, o lugar do cidadão.
Embora o tempo do país seja longo, quase eterno, e possamos errar muitas vezes, o tempo das pessoas é curto e finito. As condições precárias, insuficientes para a vida social contemporânea, que oprimem grande parte da população, transferem-se em gerações. Não é só o futuro imediato, mas o de longo prazo que se compromete.
A cidade é também o lugar do desenvolvimento.
Para romper os grilhões que impedem nosso desenvolvimento, precisamos compreender a importância do enorme patrimônio que o povo construiu: o complexo sistema urbano, onde vivem 85% dos brasileiros.
Aqui está o problema e aqui está a solução. Assim, são dois os grandes objetivos para a defesa de políticas voltadas para a cidade. O bem-estar do cidadão e o desenvolvimento do país. Indissociáveis, são tratados de modo assimétrico: ao bem-estar do cidadão, quase nada; ao desenvolvimento, sim, muito discurso, mesmo sem considerar que ele depende do espaço urbano.
O bem-estar pressupõe a paz, a garantia da segurança e da vida, mãe do Estado. Estamos iludidos achando que a segurança é atribuição setorial, da polícia. É tarefa do Estado, com todos os seus instrumentos, como o controle urbanístico, a política de habitação, de ocupação do solo, e, por óbvio, as polícias.
Também a saúde não é questão setorial. O saneamento, que só atende à metade da população brasileira, é saúde pública e deve estar em interação com o desenvolvimento urbano. Concessões, públicas ou privadas, desconectadas do urbanismo, pouco adiantarão. Também a educação. Como desterritorializá-la? Como conviverem educação e guetos, sejam ricos ou aqueles dominados pela bandidagem?
É chover no molhado pensar a economia e o desenvolvimento desconectados da base físico-social. Sem a boa cidade para o cidadão comum, para o povo, não há possibilidade de o país alcançar os patamares que o século exige. Patinaremos, e a cada eleição voltaremos ao ponto anterior, possivelmente mais degradado.
A boa notícia é que tratar a cidade é possível. A cidade, a favela, a periferia não são coadjuvantes ou meros figurantes na economia e na história. Ao contrário, aí está a energia represada capaz de promover a paz e o desenvolvimento sustentável. O que se vê como problema contém a solução. É o que a política precisa querer ver.
Desejo que os eleitos amanhã queiram ver a importância de nosso quadro urbano. No Rio, por sua situação crítica, que nosso futuro governador seja comprovadamente experiente e um trabalhador obcecado. Sejamos felizes com nossas escolhas.