As favelas, historicamente, têm estimulado a imaginação da população do Rio que nela não reside. Esse imaginário é múltiplo e variado, tendo se iniciado no início do século XX. Em grande medida, ele se sustenta em pressupostos que caracterizam as favelas e seus moradores a partir do que pode ser definido como “paradigma da carência”. Nessa percepção, os territórios favelados, em grande medida, sempre foram vistos como territórios sem normas, regras, civilidade, dominados pela completa anomia, alvos de um juízo moralista, que remete a representações como a expressa por Aluísio Azevedo na sua obra prima “ O Cortiço”.
Mundo da incivilidade, “não cidade”, por excelência, nesses territórios o domínio dos grupos criminosos armados aumentou a percepção da dissociação entre a favela e o conjunto da cidade. Nesse quadro, ao invés dos moradores serem reconhecidos como vítimas da situação de violência e a responsabilidade do Estado pela privatização criminosa do poder de regular a vida social, a criminalização das favelas e de seus moradores se ampliou.
Temos hoje, com a nova estratégia de segurança adotada pelo governo do estado, novas percepções surgindo a respeito desses territórios tão questionados. As necessidades dos moradores de segurança e de autoridade republicana no seu cotidiano estão sendo reconhecidas. Pela primeira vez, os residentes nas favelas são pensados para além de suas carências mais objetivas, sendo vistos como cidadãos até aqui destituídos de direitos fundamentais, em particular o direito à vida; ao ir e vir; à defesa da propriedade etc.
Surge um “novo” cidadão e uma “nova” cidade, a partir do reconhecimento que os seus moradores mais pobres não constituem a “classe perigosa”, não são cúmplices das organizações criminosas e muito menos compactuam com valores distintos dos outros cidadãos da metrópole. Na verdade, como sempre afirmamos no Observatório de Favelas, só existe uma cidade, só existe um cidadão. Cidade plural, diversa, diferente, mas una em sua condição fundamental, como espaço de realização da vida de forma significativa.
Esse me parece, acima de tudo, a maior conquista – e elas são muitas – da nova postura adotada no campo da segurança pública. Depois de tantos anos de denúncias, proposições, manifestações, a humanidade dos moradores de favelas e seu direito pleno começam a ser reconhecidos como valor em si. Estamos cada vez mais próximos de ver dissolvido o mito da “cidade partida”. O que tínhamos nada mais era do que a incapacidade do Estado de garantir direitos fundamentais ao conjunto dos moradores do Rio de Janeiro.
A agenda política mudou. Não será mais possível voltar atrás no caminho para um novo espaço urbano, muito mais seguro, estável e pacífico. Um espaço onde as pessoas se reconheçam muito mais pelo que as aproxima do que pelo que as separa. Teremos, enfim, a chance de reconstruir o conceito de beleza do Rio de Janeiro, deixando as favelas de ser o espaço do problema e da vergonha. Teremos, enfim, a possibilidade de evitar que novos muros – triste iniciativa – sejam criados, e que novos caminhos de partilha e vivências sejam abertos entre o conjunto de moradores que aqui vive. Que celebremos com alegria e muito trabalho essas novas possibilidades de viver no Rio de Janeiro.
*Professor da UFF/RJ e fundador do Observatório de Favelas do Rio de Janeiro