*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 27/08/11
Em recente entrevista à revista “Carta Capital”, a presidente Dilma Rousseff defende o trem de alta velocidade Rio-SP não apenas como alternativa de transporte, mas como produtor de “reconfiguração urbana”. Considera este um aspecto ainda não discutido.
A presidente contempla dois modos de transporte urbano: o sistema sobre trilhos (trem, metrô e bonde) e o sobre pneus (ônibus e automóvel), e valoriza o primeiro deles. “Uma vez em Tóquio percebi que as ruas eram estreitas, mas não havia congestionamentos… me explicaram que o sistema de trens criado depois da Segunda Guerra Mundial tinha mudado a direção urbana das cidades.”
Ainda a presidente: “Vai ocorrer uma desconcentração urbana. Alguém que viva a 60, 70, até 100 quilômetros do Rio ou de São Paulo (…) entra no trem-bala, desce no Centro da cidade e vai trabalhar.
”Precisamos saudar a pauta sugerida, pois apesar de 85% da população brasileira ser urbana, pouco se debate a forma da cidade. O desafio está colocado.
Nossas grandes cidades configuraram-se a partir dos trilhos; os trens suburbanos em rede com os bondes elétricos estruturaram a cidade moderna. No Rio, os bairros da Zona Norte e as cidades da Baixada Fluminense se desenvolveram tendo as estações ferroviárias como núcleo. Os bondes foram absolutos na conformação da Zona Sul. Tudo justamente nos cinquenta anos que antecederam a Segunda Guerra…
Por ironia, quando Tóquio investe no sistema de trens, nós o desconstruímos, em benefício do automóvel. Acabaram os bondes e levamos à míngua o sistema ferroviário suburbano, na segunda metade do século XX.
Mesmo à míngua, o sistema ferroviário do Rio foi preservado. Chegando ao fundo do poço, a operação de seus serviços foi privatizada. Melhorou, contudo continua aquém do razoável, e transporta apenas 1/3 do que nos anossetenta, então com 1,2 milhão de viagens/dia. Hoje, ressalta como oportunidade única para o desenvolvimento do Rio se for transformado em metrô de superfície. Nesta condição, talvez chegue a 3 milhões de passageiros/dia, ampliando a mobilidade metropolitana com conforto, segurança e confiabilidade— tudo que é escasso no transporte público. E ajudando a recuperara vitalidade da região, onde moram 8 milhões de cidadãos, 70% da população da metrópole. Nenhum outro investimento tem melhor custo/benefício.
De outra parte , é preciso considerar que a hegemonia do transporte rodoviário, vigente há cinquenta anos, tem causado uma “reconfiguração urbana” predatória do ambiente natural, com enormes danos sociais e econômicos. Sobre pneus, toda cidade se expande em baixa densidade populacional, com crescente exigência por novas vias. Mais pistas, mais congestionamentos, mais poluição, mais território — maiores custos de infraestrutura e de gestão. É um modelo urbanístico condenado mesmo nos países ricos e que o utilizaram pioneiramente, como os Estados Unidos.
Assim, os novos investimentos nesse modo precisam oferecer medidas acauteladoras para que não estimulem a expansão. Especialmente nos casos da Transoeste (ligação Santa Cruz-Barra) e do Arco Metropolitano (ligação Itaboraí-Itaguaí, ao norte da Baía de Guanabara).
A Transoeste passa por território pouco ocupado, as áreas ambientalmente frágeis de Guaratiba. Sabemos que limitações de legislação são pouco eficazes frente ao assédio imobiliário, legal ou ilegal. Seriam necessárias medidas que pudessem não apenas proibir, mas evitar, ocupações no entorno da Transoeste. Não é simples, mas precisam ser debatidas.
Já o Arco Metropolitano é fundamental para a logística fluminense. Mas essa tarefa não precisa estar associada à ocupação de áreas da fronteira metropolitana, também frágeis e sem infraestrutura. A população cresce pouquíssimo e há disponibilidade para indústria nos tecidos consolidados dos municípios atravessados. Assim, conviria que o desenho da estrada fosse parecido com o da Linha Vermelha, sem saídas laterais, salvo em pontos específicos, ao invés de semelhante ao da Rodovia Presidente Dutra, onde as laterais levam à ocupação do solo.
Transporte e habitação é binômio fundamental à vida urbana. Tal como no Japão, aqui também poderá ser decisivo para o redesenho da cidade metropolitana. A presidente Dilma tem razão quando valoriza o transporte sobre trilhos para o desenvolvimento urbano. Mas se o trem de alta velocidade pode ser útil na ligação entre as metrópoles paulista e fluminense, com certeza o seu desejo, de reduzir os tempos de deslocamento casa-trabalho, será melhore mais economicamente alcançado com o investimento nos trens suburbanos.
Não há por que promover a desconcentração urbana. Ao contrário, com baixo crescimento demográfico, o desafio da “reconfiguração urbana” passa pelo desenho de cidades mais compactas, bem infraestruturadas, menos predatórias do ambiente, menos desiguais.